domingo, 17 de novembro de 2013



I

A história que passo a contar deu-se numa terra onde as pessoas tinham uma dimensão física singular. Eram grandes, fortes, altas, musculosas, verdadeiros gigantes. Mas quem chegava a essa terra a uma hora em que não se via ninguém nas ruas notava as casas de tamanho vulgar amontoadas umas de encontro às outras. E algumas construções eram tão frágeis que nada fazia prever o tamanho descomunal dos seus habitantes.
Mas era verdade. Imaginem que as linhas de que se forma esta página inicial poderiam ser as simples marcas digitais de um dos dedos desses gigantes. Por aqui se fica com uma ideia.
Os gigantes ocupavam tudo à sua volta, roçando com as cabeças nos tectos, as barrigas enormes espremidas contra os móveis, acotovelando-se, famílias inteiras nos quartos exíguos. Dificilmente algum deles que fosse mais avantajado de gordura atravessava uma porta.
Esse dito povo gigante foi ganhando forma e vulto, à medida que, um por um, família a família, iam todos sendo expulsos de outras localidades, onde não eram aceites, devido à sua superioridade física, ou simplesmente não eram fáceis de integrar, por esta ou aquela razão. Eram temidos pelos vulgares cidadãos e, por isso, foram marginalizados.
Acabaram por ser reunidos numa zona abandonada por falta de segurança nas construções.
A partir dessa altura, escorraçados os monstros como temíveis leprosos, tudo era possível de acontecer, desde o maior amor ao ódio mais sublime e carregado de vingança.
As mulheres passavam os dias acocoradas de tristeza e ressentimento dentro dos lares. Esperavam algo que não vinha, talvez uma paz longínqua, um sonho irrealizável, um silêncio sempre adiado na paisagem cheia de vibrações, rumores distantes, notícias confusas que circulavam sem precisar de jornais ou correio. As gigantas sofriam nas suas poses de encolhimento com xaile pela cabeça.
E assim ficavam as tarefas desarrumadas nas casas, porque um gigante, como se pode calcular, dava sempre muito que fazer em seu redor. Uma simples volta na cama durante a noite podia virar candeeiros, mesas, vasos.
No outro dia é que se notavam os estragos. Além de que as abundantes crianças, com as suas traquinices e brincadeiras, conseguiam resultados devastadores um pouco por toda a casa.
Mas as gigantas não estavam para se ralar com isso e quase adormeciam sobre o caos dos lares.
Quanto aos homens, a maior parte deles passava o dia nas tabernas, bebendo, jogando cartas, dominó ou damas. Se fazia bom tempo, muitos vinham para o lado de fora encostar-se às paredes, em conversas mornas e trovejantes, lentas e longas, como as tardes dos Verões insuportáveis. Passavam horas derreados ao sol, apodrecendo os corpos, a começar pelos dentes. Cheiravam a suor e comida azeda nos estômagos. E para ali estavam naquela terra de coisas por saber, segurando o movimento da luz nos seus rostos sebentos e escuros.
Não foi de ontem, nem é de hoje. A história dos gigantes está sempre nas nossas cabeças, é uma sombra imensa que fica, que teima em habitar a memória do mundo, essa sim, casa grande bastante para albergar os seres de que vos falo.
Os acontecimentos que se seguem tiveram lugar dentro de espaços vulgares com paredes e tectos encardidos, janelas com vidros a flamejar para as ruas inundadas de violência, como em nenhuma outra terra se ouvira ainda contar.
A história começa com dois gigantes que, desde o primeiro dia em que se encontraram, e sem que alguma palavra tivesse sido trocada entre eles, se odiaram para sempre, nada tendo sido possível fazer ante a dimensão de tão estranha e repentina inimizade.
Júlio e Noé olharam-se e pronto! Foi uma aversão definitiva, funda, sem remédio. A partir do momento fatal em que se conheceram, qualquer pormenor podia desencadear a luta mais encarniçada entre ambos. E que ninguém se atrevesse a apartá-los. Porque todos sabiam que Júlio e Noé disputavam entre si o título de o homem mais forte da cidade. Era um ceptro feroz, que não admitia partilhas nem acordos de espécie alguma.
Estes dois gigantes eram mais bravos que os outros, que aceitavam resignados a sina de serem relegados para segundo plano.
Até se chegar aí, porém, fizeram-se muitas lutas, que foram a pouco e pouco seleccionando os mais resistentes. Júlio e Noé saíram sempre vencedores sobre os adversários que tiveram de enfrentar.
Faltava decidir, apenas, o resultado do ódio entre os dois mais fortes da cidade. Pelos olhares furibundos e incendiados que ambos trocavam, temia-se a hora em que um venceria o outro. Era uma questão de disparar contra o alvo certeiro a última flecha endoidecida de veneno. Depois, a cidade repousaria sobre as cinzas do vencido e entregaria o ceptro ao vencedor, que passaria a dominar a vida de todos como um boi capaz de roçar as nuvens com os chifres.
Mas ainda havia muito para ver e ouvir, até que se encontrasse um vencedor para aquele litígio. Ainda circulariam notícias de muitos vidros partidos e lâminas rodopiando nos ares de relâmpagos, com portas desancadas por trovões sobre os carros amolgados, de mesas e cadeiras estilhaçadas em mil pedaços de chumbo invadindo tabernas e lares.
De cada vez que Júlio e Noé se confrontassem seria sempre como se uma dúzia de bombas-relógio estourassem sincronizadas no mesmo milésimo de segundo. A destruição de um deles seria, com toda a evidência, a única saída para aquele ódio, cujos contornos escapavam ao próprio Deus.
Por isso, era necessário deixar que tudo acontecesse, que nada ficasse por resolver, que a disputa chegasse às últimas consequências. Então, era deixá-los esgrimir os punhos cerrados, enormes, como as luvas de boxe vistas num écrã de estádio olímpico, as facas atravessando os medos, os gritos desesperados das gigantas descabeladas às janelas, doidas e feridas de lágrimas cinzentas como chuva a escorrer pelos beirais. Os dois monstros aspergiam a sua maior violência contra as fachadas das casas de uma forma tal que até o Universo parecia correr o risco de desabar quando a luta tivesse o seu desenlace.
Júlio e Noé viviam o dia a dia com o objectivo de se espatifarem mutuamente com murros, pontapés, gumes afiados na goela, de que num último instante um deles conseguia sempre libertar-se, ao atirar o objecto de morte para longe, ante os olhos arregalados dos circunstantes que lhe seguiam a rota, dando àquela fracção de segundo uma imobilidade de séculos.
Ao fim de horas, as gigantas fechavam as janelas e aferrolhavam as portas, prevendo-se que ficavam a vigiar cuidadosamente por detrás das cortinas. Porque o mais certo era o desfecho das brigas entre Júlio e Noé nunca ser claro, podendo o ódio entre ambos ressurgir quando menos se contasse. Mesmo que um deles estivesse caído por terra com o rosto em postas de sangue e o outro se encontrasse colado de exaustão a uma parede ou de cabeça metida na bagageira de um automóvel, qualquer deles era capaz de ressuscitar num ápice e voltar ao ataque perante o gáudio maldisfarçado da massa de gigantes que não arredava pé.
Durante anos, nunca houve descanso na cidade habitada por aqueles dois colossos do ódio. Ao ponto de se ter tornado um hábito fazer apostas a dinheiro, ou a copos, sobre o desfecho das brigas que faziam com que a cidade fosse temida muitos quilómetros em redor.


II

Júlio era pai de tantos filhos que se tornava impossível contá-los. Andavam sempre a correr em várias direcções, nunca sendo possível saber os que já estavam identificados ou não.
Tinham vindo ao mundo atrás uns dos outros, o que não era culpa de ninguém, dizia Dora, esposa de Júlio, enquanto ia passando o tempo em lavagens monótonas ao exterior da casa, a fim de dar um aspecto de asseio aos vizinhos e transeuntes.
Dora lavava a porta e as vidraças (muitas delas estilhaçadas) com sabão e água que ia buscar à fonte pública. Esfregava tudo por fora, a soleira, os degraus de pedra, o próprio caminho, espalhando frescura à sua volta, ao mesmo tempo que olhava para a esquerda e direita da rua, procurando ver se as demais gigantas se apercebiam do rigor com que tratava dos seus domínios ou se, invejosas, a imitavam.
A casa de Júlio e Dora não passava de um casebre composto de quarto e cozinha, parecendo que, ao fim dos dos anos, tudo estava mais próximo de ruir. O telhado metia água por incontáveis gretas que as cabeçorras dos gigantes nele tinham aberto com desajeito. Os vidros partidos eram vedados com plásticos e tábuas pregadas ao desbarato, mas as futuras brigas em família encarregar-se-iam de as partir de novo. Buracos nas paredes eram muitos e de variadíssimas profundidades. E o soalho rangia sob o andar pesado dos gigantes, ameaçando desconjuntar-se mais dia menos dia.
Júlio tinha uma oficina perto de casa, onde não faltavam aparelhos e utensílios de uso diverso que lhe eram confiados para reparação. Fogões, esquentadores, frigoríficos, panelas, telefonias, brinquedos, televisões, vassouras, espanejadores, bancos, mesas, candeeiros. E, ao contrário do que acontecia em casa, o gigante movia-se entre todos aqueles objectos com uma ligeireza e facilidade inacreditáveis. Era como se ao entrar na oficina virasse anão, subitamente, ou gato a passear-se sobre uma qualquer gaze ou renda, sem deixar marcas de reboliço.
Júlio adiava permanentemente a devolução dos objectos que tinha para conserto. Quando algum gigante se lembrava de perguntar pelo seu relógio ou pelo seu penico de loiça fendido, o artista das quinquilharias arranjava sempre desculpa persuasiva. E, com o tempo, até os mais impacientes desistiam de o aborrecer, perdendo a esperança de reaver as suas coisas. Mas ninguém levava a mal o gigante, pelo seu desleixo, devido aos muitos sarilhos em que se metia.
Em casa, Júlio não fazia coisa que se visse. Quando tomava alguma iniciativa era para derrubar o que estava à sua frente. Fazia-o por fúria ou por falta de jeito, conforme os casos. Há muito que Dora desistira de o tentar corrigir.
A mulher de Júlio não era limpa nem asseada, ao contrário do que se podia depreender das lavagens que fazia ao exterior da casa. Quando terminava as suas tarefas, enterrava-se no colchão da sua preguiça, indiferente às horas, desinteressada dos urros, desmandos e gritarias dos filhos, ou mesmo fazendo como eles, envolvendo-se em quezílias, disputas, conflitos.
À medida que cresciam, os filhos de Júlio tornavam cada vez mais ténue o espaço respirável dentro de casa. Em certas alturas, viam-se mesmo na obrigação de passar uns por cima dos outros para apanhar uma mosca ou uma aranha encavalitada numa teia.
Estendida no chão, Dora ria-se das diabruras dos filhos. E rebolava com eles, gritando todos, até darem descanso aos pulmões, de bocas escancaradas, resfolegando, enquanto olhavam as paredes encardidas da casa, os tectos húmidos, as loiças fedorentas, os móveis torcidos e empenados das lutas que travavam para imitar as que o pai tinha com Noé. E para ali ficavam todos amontoados de canseira, como bezerros no matadouro.
Nessas ocasiões, Júlio encontrava-se na taberna a jogar, por entre a luz opaca dos fumos e evaporações de aguardente. Quando chegasse a casa, apodrecido de álcool, desataria à pancada na mulher, ateando de novo a gritaria, algazarra, choros e roncos entre os filhos gigantes. Júlio agredia Dora com todas as forças e com tudo o que lhe aparecia à mão, alegando que ela nada fazia pela manutenção do lar em que viviam. Mas quanto mais bofetadas e pontapés apanhasse, menos Dora estava disposta a cumprir a vontade do marido. O seu entendimento das razões que enfureciam Júlio tinha entrado, definitivamente, num processo de degradação incontrolável.
Apesar dos pedidos de socorro dos filhos de Dora, a vizinhança não se atrevia a pôr o pé dentro da casa do gigante embravecido. Júlio ameaçava desfazer tudo e todos numa fueirada de torresmos. O gigante considerava-se livre de desancar Dora dos pés à cabeça, transformando-a, muitas vezes, numa enorme ferida ensanguentada e enegrecida.
Dora não se defendia nem esperneava. Apenas chorava ácido sobre o chão, ao som das pancadas de Júlio, de cuja boca poucas ou nenhumas palavras alguma vez tinham saído. A linguagem do gigante resumia-se quase sempre a crispações do rosto e do olhar, em graus diferentes, conforme as circunstâncias, E a ira que ele espalhava parecia suficiente para arrasar uma cidade inteira.
A face de Júlio revelava, nessas alturas, uma dureza singular, como se alguém tivesse estampado nela um escudo dos antigos cavaleiros. Aos fins de tarde, eram mais visíveis as suas têmporas carregadas de cicatrizes, fruto de uma longa série de brigas em que sempre andara metido. No conjunto, o seu rosto fazia lembrar um pergaminho exposto à corrosão das eras.
No fundo, era o silêncio e a cara de pedra o que convinha a Júlio na luta pelo trono de o homem mais forte da cidade. Sabendo-se que os que muito tagarelam pouco lucram, o mutismo era uma forma de Júlio ganhar dividendos.
De todos os gigantes da cidade, ele era o menos encorpado, praticamente um lingrinhas em comparação com o impressionante físico que Noé, por exemplo, ostentava. Por isso, também, era enorme o interesse que as brigas entre os dois proporcionavam, tal a disparidade de corpos em luta, embora como já se disse, ambos fossem gigantes com todas as letras, se acaso postos ao lado de um homem vulgar.


III

Tendo chegado à cidade sem dar contas a ninguém, Noé depressa arranjou casa e montou vida. Os contornos da sua actividade não eram claros. À semelhança de quase todos os gigantes, tornou-se frequentador de tabernas desde a primeira hora. Soube-se que lhe morrera a mãe, de quem herdara alguns haveres, e que vivia só.
Mais tarde, quando se deparou com dificuldades financeiras, já havia ganho prestígio de sobra para se dar ao luxo de sobreviver sem aflições de maior.
Noé nunca precisou de dar grandes voltas ao miolo para garantir uma vida estável. Com ameaças veladas pelo negrume das noites, altura em que os grandes problemas mais facilmente encontram soluções, ele deu sempre conta dos trabalhos que lhe apareceram. E, pelos vistos, nunca lhe faltou dinheiro para o jogo e para os copos.
Por ser falador e gostar de algazarra, estava continuamente rodeado de outros gigantes que, ora o espicaçavam e atiçavam o orgulho contra o grande rival, ora se dedicavam a ouvi-lo com submissão.
Noé não prescindia de admiradores, dizendo com frequência, alto e bom som, que por um amigo era capaz de dar tudo e que, neste mundo, só nutria verdadeiramente ódio por uma pessoa.
Nesses momentos, caso Júlio estivesse por ali, os outros gigantes fingiam-se distraídos. Mas se Júlio andava longe, incitavam Noé a provar que era o maior. Este costumava responder que estava exactamente à espera de Júlio para um jogo de damas, só que, pelos vistos, o rival tinha medo de aparecer.
Os presentes desatavam a rir com a sua apregoada coragem, porque sabiam que Noé evitava sempre o confronto directo com Júlio. Esperava que o grande inimigo se embebedasse por completo e desaparecesse da taberna. Só então se sentava à mesa para jogar.
Noé não perdia tempo e punha-se de imediato a cuspir ameaças ao adversário que lhe surgia pela frente.
Começava por colocar o dedo mindinho sobre a mesa de jogo e esse gesto insignificante era como o de um míssil prestes a explodir. Depois, pegava nas suas partes íntimas, puxava-as em concha para a frente e sentava-se, deixando entre as pernas a saliência de uma abóbora.
Por falar excessivamente, Noé dizia-se o melhor em tudo com uma acentuada falta de pudor. Jurava pelas almas do Purgatório que ainda não desfizera Júlio de um só golpe por ter pena dele e da manada de filhos que tinha à sua conta, além de que Dora nem era má pessoa...
De qualquer maneira, dizia Noé, o homem mais forte da cidade necessitava de antagonista à altura. Júlio, embora mais pequeno em tamanho, era o único capaz de lhe fazer frente com dignidade. Portanto, o seu rival era o segundo em força. Ele, Noé, o primeiro. Para quê desfazer, então, com um murro de elefante o homem que servia para demonstrar a sua indiscutível superioridade sobre todos os outros?
Para afastar dúvidas quanto ao seu domínio no campo da força física, ele punha-se a palpar as braguilhas dos presentes, entusiasmando a assistência que o apoiava e aplaudia. Depois, pedia mais uma cerveja e sugeria a todos os gigantes que contribuíssem com a sua urina para o copo a transbordar de espumas. E dizia ser capaz de engolir aquilo (tal como engoliria o próprio Júlio, se fosse preciso), conforme veriam. Se alguém quisesse apostar que avançasse.
Os gigantes já conheciam o ritual, e apostavam, só para ver Noé cumprir o prometido e despejar vários copos de urina pela garganta ressequida.
Era voz corrente que as teorias ruidosas de Noé e o seu feitio intempestivo seriam efeito de um desmedido ressentimento que ele guardava contra o silêncio de Júlio. Por isso, vivia enredado nas malhas dos olhares venenosos que o adversário lhe lançava, nunca se dando ao luxo de lhe dirigir palavra, a fim de não reconhecer qualquer mérito.
Então, Noé ripostava contra os gigantes menos poderosos que o rodeavam. Para não dar parte de fraco, evitava falar directamente com Júlio porque sabia que as suas conversas não obteriam resposta. Não lhe agradava cair no ridículo ao confrontar-se com a mudez completa. Por isso, caía num rodopio de sentimentos contraditórios que o projectavam para a frente das palavras. E embora soubesse que não falava verdade mantinha a casmurrice de afirmar a sua força indomável e coragem imbatível.
Mas era só na ausência de Júlio que ele se dizia o mais forte de todos os gigantes. Se o grande rival estava presente, Noé encurralava-se num tropel de frases vagas e propositadamente ininteligíveis, como se a sua tão apregoada bravura, de súbito, tivesse encontrado um buraco no chão da taberna. Depois, escapava-se para casa e deixava-se cair na cama, sob a qual tinha sempre uma caixa de cervejas, que esvaziava em poucas horas. Dormindo e bebendo, recobrava forças para o dia seguinte. Nunca se sabia quando chegava a ocasião do confronto decisivo com o temido rival.
Cada dia que passava era menos um na contabilidade da guerra, ora desenfreada ora escondida, que Júlio e Noé travavam um contra o outro, sem que os motivos de um ódio tão desmedido viessem ao de cima, a não ser os já conhecidos de uma aversão implacável à primeira vista, que sempre os desunira e que deixara marcas visíveis em ambas as partes.
Noé, de orgulho esquartejado, não aguentava a aceleração das palavras que lhe saíam da boca, enquanto Júlio engolia as vinganças em silêncio. Ambos urdiam, deste modo, a sua teia de rumores subtis em que esperavam ver o adversário tropeçar.


IV

Uma vez, ao acordar, Noé apercebeu-se de que tivera um sonho em que a mãe lhe aparecera e falara ao coração. Ela começara por repreendê-lo pela sua falta de coragem na presença de Júlio. A seu ver, não havia razões para isso, porque Noé era, sem sombra de dúvida, o homem mais forte da cidade. Em comparação com o filho, Júlio era um lingrinhas, um velho, um escanzelado.
Noé não tinha nada que envergonhar a família e devia provar ao grande rival que não o temia sob nenhuma forma ou circunstância.
De início, Noé não queria acreditar no que ouvia. Mas a mãe foi peremptória e disse-lhe que, passados alguns dias, ele receberia uma carta pelo correio a confirmar tudo quanto agora lhe era comunicado. Ela estava só a fazer umas economias para o selo, que lá naquelas altíssimas paragens era muito dispendioso. As palavras da sua missiva seriam escritas a ouro e Noé devia recorrer a elas para atestar a veracidade do seu sonho perante todos os gigantes.
De uma vez por todas, Noé tinha que aproveitar a força que lhe chegava do outro mundo através das boas graças da mãe. Com a ajuda da carta que ia receber, o seu ascendente sobre Júlio ficaria mais do que demonstrado.
Ele tinha a certeza de que o recado da mãe tivera aprovação do Criador, pois ela estava no Céu, onde as alminhas santas não comunicavam com os filhos na Terra sem a devida autorização de Deus. Neste caso, era óbvio que o Senhor do Universo o considerava o homem mais forte da cidade. E, se calhar, ainda havia de fazê-lo soberano do planeta, provavelmente depois de Júlio ter sucumbido sob a raiva dos seus punhos.
Noé levantou-se a correr e saiu de casa depois de uns apertões na porta, porque o seu corpo inchara exageradamente com o sonho que acabara de ter. Competia-lhe, agora, na prática, honrar os elogios que a mãe lhe fizera e mostrar a todos os outros que era um gigante investido de poderes divinos.
Foi com esta força sem limites que o colosso entrou na primeira taberna que encontrou, atravessando fumos e escarros de toda a espécie, para dar de caras com uma quantidade de gigantes que se amontoavam em redor de uma mesa na qual Júlio jogava dominó.
Após a entrada de Noé, houve logo um repentino abrandamento de vozeirões, mas Júlio nem moveu a aba mais frágil das suas orelhas de couve.
Alguns gigantes afastaram-se para dar passagem a Noé, que tinha amolgado a banda direita da testa no esforço precipitado de atravessar a minúscula porta da taberna e que vinha roncando por causa dessa dor na cornadura.
A fúria de que vinha animado era tal que libertou a coragem que até aí nunca tivera e lançou no ar a frase que desde há muito tinha atravessada na garganta. As suas palavras saltaram no ar pesado como facas incandescentes acabadas de sair da goela de um vulcão. Noé disse, com todas as letras, quase submergindo os presentes, que, a partir daquele dia – fosse diante de quem fosse – ele era o homem mais forte da cidade! Se alguém tivesse dúvidas que telefonasse para o outro mundo, onde a sua própria mãe se prestaria a esclarecer o que fosse necessário.
Temendo a reacção de Júlio, os gigantes entreolharam-se numa inquietação que inundou a taberna até aos ossos. Os copos de cerveja detiveram-se, subitamente, na viagem rotineira para os lábios gretados, à espera que Júlio se engalfinhasse em Noé, recorrendo a golpes de rins nunca vistos e estrangulamentos com garras de abutres acostumados às mais incalculáveis e surpreendentes façanhas.
Todavia, depois da afirmação de Noé ter atroado os cantos da taberna, não restando dúvidas de que aquela era a maior provocação que alguma vez um dos gigantes tinha feito ao outro, Júlio não moveu uma sobrancelha. Nem parou de jogar. Manteve-se calmo, indiferente, como se a frase de Noé não passasse de uma das maiores banalidades que ouvira ao longo da vida.
A tensão era tal que, na taberna, até as moscas deixaram de bater as asas. O próprio Noé parecia hesitar acerca do significado do que dissera. Como se lhe faltasse ali a mãe para o reanimar. Ou necessitasse de um sopro divino para ascender rapidamente aos céus, antes que Júlio tivesse tempo de fazer contas ao que ouvira e reagisse.
Mas o jogo de dominó chegou ao fim sem perturbações. Júlio levantou-se da mesa, ajustou as calças amarrotadas na cintura e dirigiu-se calmamente para a porta de saída, passando a escassos milímetros de distância da barriga de Noé.
Sentiu-se um arrepio percorrer toda a taberna nesse momento, porque os dois valentões nunca tinham sido vistos tão próximos um do outro sem se envolverem à pancadaria. Enquanto os segundos não passavam, o espaço vago dentro do estabelecimento era nenhum. Porque se dera logo uma grande afluência de gigantes ao local, gigantes de todas as idades e feitios, como se a provocação de Noé tivesse sido previamente anunciada à população muito antes ainda de o próprio ter decidido fazê-la.
Apesar de nunca se poder saber ao certo o que terá pensado Júlio nesse momento crucial, a única alternativa que se lhe deparou, depois de a taberna se ter enchido de curiosos, foi passar a uma unha de distância da barriga de Noé.
Os dois inimigos trocaram um olhar rápido, intenso, escaldante, avaliando as consequências profundas daquele encontro estranhamente tão comedido.
Recuperado da hesitação que o abalou logo depois de ter dito a toda a gente que era o homem mais forte da cidade, Noé depressa percebeu que não podia recuar. Por maior perigo que corresse, mais valia enfrentar o adversário.
Assim, olhou a menor estatura de Júlio como a um mísero rato que passa a tremer diante de um tigre. E não foi capaz de adivinhar o que estaria Júlio a congeminar durante os breves segundos que demorou a levantar-se e abandonar a mesa de jogo, avançando para a porta de saída com uma calma e uma indiferença que faziam prever o pior.
Júlio não desiludiu os inúmeros admiradores que tinha na cidade. Apercebendo-se da súbita perplexidade de Noé, deteve-se por uns instantes, inclinou o tronco para a frente, estendeu a perna esquerda para a retaguarda e disparou um peido com toda a violência na direcção do nariz do opositor, deixando em sobressalto os gigantes que enchiam a taberna até à porta da rua.
Noé ficou sem capacidade de resposta. Embasbacado, não sabia se havia de rir ou chorar, se havia de ficar onde estava ou se havia de desatar a perseguir Júlio pelas ruas da cidade.
Mas enquanto Noé hesitava sobre o que fazer perante a humilhação pública a que fora submetido, Júlio avançava pela rua, aos tombos, arrotando álcool à esquerda e à direita, tendo mesmo que agarrar-se de vez em quando às saliências dos beirais para não cair estatelado no chão. Parecia um vapor com rombo no casco deslizando sem destino sobre o alcatrão. E por detrás das cortinas, as gigantas seguiam-no com olhos de coruja, desfiando credos pela boca.


V

Ao sair da taberna, Júlio não foi para a oficina. A sua alma abarrotava de navios enterrados em limos e caixas antigas por abrir. Era em casa que ele gostava de enfrentar os ventos e aglomerados de nuvens que ameaçavam a sua vida permanentemente.
Dora aprendera a não reagir aos humores tresmalhados do marido. Mas os filhos costumavam gritar como porcos feridos quando o pai desatava a bater na mãe, parecendo querer destruir tudo à sua volta. E só se calavam quando Júlio dava descanso à sua fúria contra a mulher e contra o mundo.
Naquele dia, ao entrar em casa, Júlio viu os pequenos gigantes nas arrelias e travessuras do costume. Sentada a um canto, Dora entretinha-se a fazer balões com uma pastilha elástica que encontrara sob o tampo de uma mesa.
Quando viu o marido entrar a porta, Dora perguntou-lhe se já havia decidido pagar a conta da água, pois há meses que não valia a pena abrir as torneiras. Os serviços municipalizados tinham perdido a paciência.
Júlio evitava pagar despesas correntes porque, no seu entender, os problemas resolviam-se por si mesmos. E se não se resolvessem, a Câmara daria o desmazelo por esquecido.
Assim, não custava imaginar os cheiros que cresciam na casa de Dora ao longo do tempo. Eram cheiros tão grandes e densos como os filhos de Júlio, que atravessavam a casa em todas as direcções, enchendo-a de putrefacções.
Júlio não respondeu à pergunta da mulher sobre a conta da água que estava em dívida. E Dora comentou o seu estado de bebedeira colossal dizendo que era um caso sem solução.
Ele reagiu como se apenas estivesse à espera de ouvir o que ouviu. Deu um salto de fera sobre a mulher, desatando a agredi-la com bofetadas e socos, enquanto o sangue lhe saía em esguichos pelas narinas.
Ao verem a fúria desalmada com que Júlio atacava Dora, os filhos puseram-se a correr para a vizinhança a pedir ajuda.
Veio muita gente espreitar às janelas e amontoar-se à porta da casa onde se desenrolava a briga, mas ninguém fez nada, ninguém mugiu, só à espera de ver Dora definhar sob a raiva enlouquecida que Júlio carregava no coração de breu.
O agressor sentou-se em cima da mulher e começou a apertar-lhe a garganta, fazendo-lhe andar os olhos em moinho dentro das órbitas. E, de súbito, ela recordou-se do tempo em que ambos se tinham namoriscado à sombra dos campos de milho com o chilreio dos pássaros a engalanar-lhes a aventura dos beijos. Os pais de Dora, porém, nunca haviam concordado com aquele relacionamento. Muito menos queriam ouvir falar em matrimónio. Por isso, um dia, Júlio encheu-se de brios e raptou aquela que havia de ser sua esposa.
Júlio e Dora fizeram amor pela primeira vez na arrecadação de um prédio em obras, onde se esconderam da perseguição movida pelos pais dela. O sentimento que desde então os uniu ficou eternamente por resolver. E assentou raízes num ciúme violento em permanente risco de desabar.
Com o tempo, Júlio ganhou o hábito de maltratar Dora. Fazia-o geralmente com a fivela do cinto. E não se esquecia de acentuar que, deste modo, as suas marcas ficavam devidamente registadas, contribuindo para que Dora tivesse sempre presente que Júlio era (e continuaria a ser) o único homem da sua vida.
Ranhosos e barrigudos, os filhos de Dora aperceberam-se de que o pai corria o risco de a matar, apertando-lhe as goelas. E então puseram-se a rezar a todos os santos, pedindo que Júlio desistisse das suas intenções assassinas.
O monstro, porém, não ligava às preces dos filhos. Espetou as unhas sujas e mal cortadas no pescoço de Dora, desatou aos gritos como um rochedo no fim do mar e fez explodir a sua grande ofensa contra todos os gigantes, contra a própria existência, contra os torvelinhos infindáveis da mente. Júlio dizia, para quem o quisesse ouvir, de uma vez por todas, e pedia que espalhassem a notícia aos quatro ventos, que ele era o homem mais forte da cidade, o homem mais forte do mundo!
A seguir, libertou o pescoço de Dora, que ficou de cara à banda, sem ânimo, tão roxa que parecia morta, extenuada pelas vibrações incontroláveis da cólera.
Júlio levantou-se, e só o facto de o ter feito, olhando em volta com as órbitas desvairadas, provocou a fuga de todos os gigantes, que se tinham apinhado, em cachos, junto à sua casa, contra a porta e janelas. Desapareceram como abelhas perseguidas pelo fumo.
Mas os filhos mais crescidos e valentes de Júlio decidiram que já era altura de perder o medo do pai, que devia ser castigado pela agressão a Dora. Todos juntos, talvez conseguissem pregar-lhe um susto.
Organizaram-se e combinaram uma estratégia adequada às circunstâncias. Nada de fraquezas, nada de hesitações, sempre em frente, olhares firmes, para o apanhar de surpresa.
Aproximaram-se da casa onde viviam e de onde tinham acabado de fugir, avançando sobre Júlio antes que este tivesse tempo de perceber o que se estava a passar.
Como ursos esfomeados e sujos, rodearam o pai, que começou a ver tudo cinzento à sua volta, tudo azul-ferrete, tudo castanho escuro. E naquele preciso instante veio-lhe à memória a sombra da esquina onde tinha sido abandonado em criança sem dó nem piedade. Abandonado para sempre. E nunca mais soube o que tinha ficado para trás na sua vida. Era esse negrume que o indignava.
Numa revolta sem precedentes na família de Dora, os gigantes caíram em massa sobre o pai, como uma dúzia de elefantes. Agarraram-no pelo pescoço, cabelos, pernas, braços. Rebolaram todos pelo chão e roncaram de violência, fazendo estremecer as casas da vizinhança.
Júlio desapareceu sob a montanha de carnes que os filhos formaram para o derrubar. E, a certa altura, foi como se o soalho o tivesse tragado. O que não era impossível, tal a convicção e destemor com que os jovens gigantes enfrentaram o progenitor.
Aflita, Dora foi ver o que se passava. Mas acabou por cair na confusão de gritos, socos, berros esganiçados, pedidos de socorro, cabeçadas, grunhidos.
Até o dia terminar, os gigantes esmurraram Júlio com todas as suas forças e desejos de vingança. Mas, depois, com o cansaço, os risos já se confundiam com as ameaças e lágrimas. Já ninguém sabia em quem bater, nem porque bater.
Houve ainda uns guinchos e uns choros por parte dos gigantes mais pequenos, e alguns espernearam até ser noite cerrada, mas, por fim, saturados da briga, as forças amoleceram e, aos poucos, os gigantes entregaram-se ao sono fundo, como baleias negras estiradas na praia.
Júlio foi dos primeiros a adormecer. Nunca acreditou que os filhos estivessem a sério quando o atacaram. Ficou com um olho negro e levou com uma cadeira na cabeça, mas pensou que aquela agitação fazia parte da bebedeira.
Durante a noite, os horizontes confundiam-se. À medida que as horas passavam, o calor e o cheiro atraíam os corpos. Enquanto dormiam, os gigantes abraçavam-se, espancavam-se, roncavam, saltavam para cima uns dos outros, refilavam com quem os importunava. Alguns seduziam-se. Amavam-se numa liberdade de ondulações íntimas, murmúrios, gemidos. No dia seguinte, ninguém se lembrava de nada.


VI

Bastante tempo depois de Júlio ter deixado a taberna, Noé continuava rodeado de gigantes, que se entretinham a beber, ruidosamente, como se acabados de chegar do deserto, sequiosos de lavarem as almas.
Uns diziam que Júlio tinha fugido com medo, argumentando que o peido fora um ardil para contornar a superioridade de Noé.
A própria sova que Júlio apanhara dos filhos falava por si. Era cada vez mais evidente que o seu tempo já tinha passado.
Mas nem todos eram da mesma opinião. Havia quem defendesse que Júlio continuava a ser o maior e que naquele dia se tinha limitado a não ligar patavina ao rival, tendo-o envergonhado e desprezado com um simples traque. Noé tivera a coragem de dizer diante de todos que era o homem mais forte da cidade, mas nem por isso as coisas tinham mudado de feição, nem por isso as horas tinham deixado de passar.
Quanto à sova que apanhara dos filhos, muitos defendiam que Júlio apenas não os quisera magoar, fingindo-se derrotado. Daquela forma, ia-os preparando para o futuro, animando-os, incentivando-os. Outros eram de opinião que tudo não passara de uma brincadeira.
Noé, por seu lado, vangloriava-se do facto de ter anunciado diante de todos, incluindo diante de Júlio, que ele próprio era o homem mais forte da cidade. Dizia que ficara provado à evidência que o adversário não tivera cara de o enfrentar. E babava-se, com a espuma correndo em ondas de cerveja pela camisa alagada.
Todavia, logo que descortinou uma oportunidade, deixou os gigantes a olhar uns para os outros na taberna e foi direito para casa, onde se fechou a sete trancas.
As suas dúvidas aumentaram, dando origem às mais diversas hesitações interiores. Por mais destravado de boca que fosse um gigante, no íntimo havia sempre uma consciência dos limites.
Mergulhado em confusão, Noé achou que talvez fosse boa ideia escrever à mãe, que estava no Céu, rodeada de anjos e músicas celestiais enchendo de luzes a eternidade.
Começou por apresentar um rol de queixas sobre Júlio, que lhe dera um peido nas ventas depois de Noé o ter desafiado dizendo alto e bom som que ele mesmo era o homem mais forte da cidade.
Era, por isso, urgente que a mãe lhe enviasse a tal carta prometida, escrita a letras de ouro, a comprovar a sua superioridade sobre tudo e todos. E de preferência que Deus não se esquecesse de pôr o carimbo da sua santidade no fino papel, para que todos acreditassem na leitura.
Contudo, Noé pensou que talvez não valesse a pena continuar a escrever à mãe porque a carta dela poderia já estar de viagem num envelope rumo à sua caixa de correio.
Então, rasgou o que escrevera com os dentes de lobo nas gengivas inflamadas, fazendo lembrar o desespero de um escritor enervado que teme não encontrar a fórmula exacta para a comunicação com os leitores.
A seguir, decidiu passar pelas brasas, procurando entrar em contacto com a mãe através dos sonhos, uma forma rápida e eficiente para suavizar as suas apoquentações.
Em poucos segundos, deixou cair o seu peso de muitas centenas de quilos sobre a cama, que não aguentou o embate, abrindo as pernas como um quadrúpede e desconjuntando-se,
Mas Noé não ligou ao desabamento da cama e de olhos fechados deixou-se ir em busca do ponto branco na imensa esfera negra do vazio onde a mãe havia de estar à sua espera.
Porém, nada viu, nada encontrou, a não ser a sombra perseguidora de Júlio, que o amarrava de pés e mãos e o despejava num poço sem piedade. Era uma queda sem chão, com Noé interminavelmente acossado pela vertigem de luzes paralelas. Ele bem procurava agarrar-se a algo, mas a morte era escorregadia e lisa, sem ramos nem bicos de rocha onde alguém se pudesse agarrar no último minuto do desespero. Noé gritava que não queria morrer assim de repente transformado num balão vazio. Pedia que o salvassem, que o tirassem daquele precipício e então acordava encharcado na sua própria urina com cheiro a podridões de laboratório.
Incapaz de resistir ao pesadelo, o gigante acabava sempre por cair nas voltas da escuridão. E dava invariavelmente de caras com um Júlio sorridente que o convidava a uma roleta russa, só que o tambor era completamente carregado de balas quando chegava a sua vez de disparar. Noé transpirava como uma besta desalmada e rezava avé-marias umas atrás das outras no momento em que apontava a arma com os chumbos prontos a entrar-lhe pela banda da cabeça desguarnecida.
Os outros gigantes riam da sua fraqueza e insistiam que ele já estava morto há muito tempo, por isso o contacto que tivera com a mãe não fora um sonho, mas sim a realidade palpável de que se fazia o mundo dos cadáveres. E acrescentavam que, entretanto, Júlio fora coroado rei com todas as honras.
Em completo desatino, Noé puxava o gatilho e dava um pulo na cama, sendo de imediato assaltado por esguichos de luz que o sufocavam. Depois, as ratazanas cercavam-no e preparavam-se para o devorar. Ele debatia-se, esperneava, defendia-se, até perceber que estava rodeado de alucinações com centopeias cósmicas a pontapeá-lo na lama do medo.
A ver se sossegava, Noé levantou-se da cama, voltou à taberna e pediu a vários gigantes que viessem a sua casa.
De início, ninguém queria ir, e chegaram a perguntar-lhe se ele metera alguma bruxa entre os lençóis. Mas ele tanto insistiu que os gigantes não resistiram e acabaram por lhe fazer a vontade.
Ao chegarem, tinham garrafas abertas sobre as mesas e uma voz pegajosa de mulher em altas cantorias na cassete de um gravador.
Depois dos primeiros momentos, os gigantes foram-se adaptando, entusiasmando, entregando, e não muito tempo depois alguns já caíam de bêbados sobre o chão, adormecendo em roncos profundos. Outros faziam pares, dançando conforme as amizades e bamboleando-se desajeitadamente.
A tarde corria morna sem expectativas, sendo apenas interrompida pelos estrondos das cabeçadas que os gigantes davam uns nos outros, nas paredes, nos móveis, no soalho, e que pareciam explosões próprias do batimento agressivo da música. Quando a cassete terminava, havia sempre alguém que a rebobinava. E tudo se repetia ao som dos passos desencontrados. Alguns não escondiam as mãos enlaçadas entre gargalhadas estridentes e divertidas que vinham alegrar o movimento comum da vertigem em que se haviam afundado.
Passaram a tarde inteira em casa de Noé, remando no seu barco que navegava sempre pelo mesmo sítio do mundo. Consolavam-se nos braços uns dos outros, como crianças à beira de amores primordiais. Até que a bebida os derrubasse a todos com as suas mandíbulas enevoadas de doçura.


VII

Júlio esteve três dias sem aparecer na taberna. Exactamente o tempo que durou a cozedura de bebedeiras em casa de Noé.
O gigante andou metido entre as suas bugigangas, tirando de um lado, metendo no outro, desfiando cabos, desbarbando vassouras, a fim de construir uma corda à prova da maior resistência. Dia após dia, o rolo ia-se amontoando pacientemente no espaço vago entre as quinquilharias.
Fornecido de vários garrafões de cinco litros de aguardente mais pura, não lhe faltou com que distrair as ferramentas do cérebro, à espera da hora que ele sabia a mais acertada para fazer valer os seus trunfos.
O seu plano devia ser executado no dia da chegada dos camiões que traziam os alimentos necessários à sobrevivência dos gigantes. Eram às dezenas, descarregando toneladas de embalagens e pacotes dos feitios mais diversos. Mas em pouco mais de vinte e quatro horas desaparecia tudo, por vezes até dando a ideia de que nem as populações inteiras de Paris ou Roma seriam capazes de devorar tanta comida. Assim, os gigantes passavam fome durante a maior parte do mês. As bebedeiras eram a sua salvação.
Júlio não se lembrava do dia certo em que chegavam os camiões. Depois do álcool que emborcara, estranho seria que tivesse a memória afinada. Por isso, ocupou o tempo trabalhando em cordas e cabos de noite e de dia, para que o seu esquema não corresse o risco de falhar. O pior que lhe podia acontecer era fracassar diante de Noé.
Ao fim de uma quantidade de dias, ouviu finalmente o barulho dos motores em cadeia que faziam tremer a terra num abalo sísmico prolongado. Saiu para a rua e presenciou vários gigantes com os ouvidos colados ao chão tentando confirmar a aproximação dos veículos.
Sem perder tempo, Júlio dirigiu-se para a rua principal, onde se misturou com a multidão de gigantes que vinham receber o cortejo de veículos.
Depois de as muitas centenas de caixas e sacos terem sido descarregados e remetidos para o seu destino, Júlio avançou sorrateiramente e foi falar com os motoristas.
A conversa não demorou. Porque nenhum dos interpelados se atreveria a negar um pedido a Júlio. Viu-se-lhes as caras resignadas e percebeu-se logo que alguma coisa estaria para acontecer.
Júlio deu um salto à oficina e regressou minutos depois, arrastando o peso dos rolos de corda que tinha fabricado durante os dias em que ninguém lhe pusera a vista em cima.
Atrás de Júlio vinham gigantes, gingantões e gigantinhos que lhe adivinhavam os intentos. Lia-se nos seus olhos inquietos o pressentimento de que se aproximava uma das ocasiões que haveria de marcar a história da cidade.
As gigantas espiavam o acontecimento por detrás das minúsculas janelas que lhes serviam de esconderijo. E a agitação subia de tom à medida que os curiosos aumentavam de número, tecendo especulações sobre as forças de Júlio. Havia quem garantisse que já o vira derrubar duas chaminés sem a ajuda de qualquer ferramenta, só ao murro e ao pontapé.
Naquele dia, porém, Júlio quis ir mais longe do que nunca.
E pôs-se a desenrolar as cordas e cabos que trazia, unindo-os uns aos outros, através de nós reforçados. Depois, prendeu um dos camiões pelo eixo traseiro, a seguir outro, e outro, até aos seis.
Alguns motoristas acercaram-se dele, na tentativa de o fazer mudar de ideias, mas Júlio não estava disposto a recuar um milímetro após todo o trabalho que tivera ao longo dos últimos dias.
Poucos minutos mais tarde, apareceu Dora aos gritos, de xaile pelos ombros, pedindo ao marido que não fizesse aquilo, que pensasse nos filhos que tinha para sustentar, que se lembrasse das suas responsabilidades.
Júlio não deu ouvidos à mulher e repeliu-a com meia-dúzia de cotoveladas. Mas logo a seguir vieram os filhos em cacho, numa barulheira infernal, suplicando a Júlio que tivesse pena deles.
Os gigantes que assistiam ao espectáculo não gostaram da intromissão de Dora e dos filhos. E alguns mandaram-nos calar, sugerindo que nada havia de acontecer a Júlio, que ele era forte bastante.
Dora implorou compreensão aos gigantes que a rodeavam e ajoelhou-se ali mesmo na rua, pedindo a Deus que lhe poupasse o marido.
Todavia, Júlio não dava atenção ao que se passava à sua volta. Só se preocupava em verificar se todos os camiões estavam bem amarrados, para que o seu plano não fosse por água abaixo.
Quando os passeios já se encontravam apinhados de gente que pretendia assistir ao espectáculo, Júlio propôs aos camionistas que lhe prendessem os pulsos nos extremos da corda. Aquela seria uma prova de força nunca antes experimentada.
Júlio foi amarrado como pediu, fazendo com que dezenas de gigantes se encolhessem arrepiados.
Logo a seguir, os motoristas tomaram os seus lugares aos volantes das poderosas máquinas, enquanto alguns pareciam ainda não acreditar que Júlio estivesse disposto a pôr a vida em risco de forma tão arbitrária.
As portas das cabinas fecharam-se à uma, com estrondo, e os motores foram postos a roncar.
Júlio encarava enfim a morte de frente, apesar da respeitável distância a que se encontrava do primeiro camião. Parecia querer ganhar tempo para medir as consequências dos seus actos até ao último pormenor. Tudo porque Noé tinha decidido anunciar pela primeira vez em público que era o homem mais forte da cidade.
Caso Júlio conseguisse dominar as feras metálicas que tinha pela frente, sustendo os efeitos da borracha queimada por entre uma infindável cuspideira de gasóleo, Noé teria que passar a recorrer de forma mais eficiente ao engenho da cabeça e dos músculos.
O barulho dos motores aumentou subitamente e viram-se as rodas dos camiões levantadas no ar a girar sobre os eixos. Nenhum dos veículos avançou um milímetro. Porque Júlio os segurava com todas as suas forças, envolto numa espessa nuvem de mau cheiro, combustível queimado e fumos azulados. Tinha o rosto crispado, o corpo todo retesado, os pés colados ao asfalto e os braços esticados pela força dos camiões. Parecia uma âncora que navio algum era capaz de arrancar ao fundo dos mares.
No momento exacto em que, sincronizadamente, os seis camionistas meteram a segunda velocidade nos seus veículos, Júlio aproveitou para respirar através de um grito vulcânico que se elevou nos ares. Nessa altura, muita gente duvidou da verdadeira resistência do marido de Dora. E houve quem chegasse a pensar que Júlio tinha feito um pacto com o demónio, ou, no mínimo, desencantara uma magia qualquer para segurar a força brutal dos seis camiões.
Mas, de repente, os fumos e vapores desapareceram. Júlio tinha-se posto a soprar com todas as suas forças para não morrer asfixiado. Não queria dar parte de fraco. Por isso, continuava de pulsos amarrados à corda que segurava as máquinas enfurecidas. Mas ninguém tinha a certeza de que ele conseguisse resistir.
Então, a massa de gigantes decidiu tomar partido na contenda. Contra os camionistas, que eram oriundos de outras paragens, e a favor de Júlio, que era um dos seus e com quem conviviam todos os dias na taberna. De resto, o marido de Dora merecia todo o apoio só pela coragem que revelara ao desafiar o poder de seis camiões.
Começaram a ouvir-se berros e gritos de incentivo a Júlio. Que aguentasse, só mais um bocado, que estava quase ganho o desafio, que resistisse só mais um minuto, que os motores haviam de gripar, que não os envergonhasse a todos e tivesse calma...
E a verdade é que as centenas de gigantes que se tinham juntado na rua principal da cidade não tinham motivos para estar desiludidos. Porque Júlio segurava com mãos de ferro as rédeas da maquinaria que se contorcia sob a rotação progressiva dos motores.
A certa altura, os motoristas desistiram. As máquinas tinham sido submetidas a um acentuado sobreaquecimento e eles não podiam correr o risco de ficar sem transporte para os dias seguintes. Notou-se mesmo que alguns pneus, por pouco, não derreteram.
E foi o próprio Júlio que, descontente com a demonstração de força que acabara de dar, e uma vez desamarrado, acometido por um vendaval de fúrias sobre as quais já não tinha controlo, se atirou descomandando contra os veículos, virando-os à força de braços, torcendo-lhes os eixos, amolgando-lhes a chaparia com cabeçadas de touro picado nos olhos. Tudo para gáudio dos gigantes que assistiam, eufóricos à prova de força mais descomunal que alguma vez se vira na cidade. E para desespero dos motoristas que se puseram em fuga ante o espectáculo feroz de tamanha destruição.


VIII

Depois do inesperado desmantelamento dos camiões, as pessoas deitaram a correr para vários lados, receando que Júlio estivesse na disposição de acabar ali mesmo com as vidas de toda a gente. Era uma espécie de fuga para o fim do mundo. Os gigantes desapareciam precipitadamente pelas portas das tabernas e janelas das casas, esgueirando-se dos olhares desvairados de Júlio.
Em poucos minutos, a rua ficou deserta. Todos os gigantes tinham-se resguardado no sítio mais seguro e observavam os passos seguintes de Júlio, agora, através das frinchas, por detrás dos reflexos das vidraças, por entre a agitação mal disfarçada das cortinas.
Mas Júlio limitou-se a fazer o seu percurso de sempre. Seguiu na direcção da taberna. E até houve quem dissesse que nesse momento a morte se escondera atrás de uma árvore, pensando que o monstro vinha resolver contas com ela, e se esgueirou habilidosamente por uma corrente de ar fresco que passava.
O marido de Dora entrou na taberna depois de ter desfechado um coice feroz na porta semifechada de medo.
Noé estava sentado à mesa do dominó, com cara de quem não sabia de nada, nem sequer ouvira falar dos camiões.
Os gigantes que tinham procurado abrigo na taberna encolheram-se todos para o canto mais afastado da cena principal, enquanto Júlio progredia com a mão direita em forma de gancho directamente ao pescoço de Noé, que nem teve tempo para um gaguejo, uma palavra balbuciada, qualquer coisa que lhe servisse depois para apresentar como desculpa caso a situação não lhe corresse de feição.
O que fez, num último instante, foi levantar-se e tentar barrar o caminho ao inimigo, pondo uma cadeira à frente do peito.
Só que Júlio tinha exercitado os seus melhores reflexos na antevisão daquele momento.
Sem hesitar, deu um berro medonho, fazendo com que o adversário perdesse a concentração por uns breves segundos. Logo a seguir, tentou roubar-lhe a cadeira.
Mas Noé recuperou o instinto nessa altura precisa e não deixou escapar o escudo improvisado.
Logo a seguir, os dois agarraram-se um ao outro no meio de um grande berreiro, entre socos e pontapés, fazendo ir a cadeira pelos ares.
Abraçaram-se de raiva como dois amantes inseparáveis. Rebolaram pelo chão, desabaram por cima das mesas, bateram contra as paredes, espatifaram o balcão, estouraram prateleiras.
A dado momento, Júlio conseguiu agarrar Noé conforme mandam as regras das lutas sem árbitro. Pegou em cheio na abóbora que o rival tinha entre as pernas e, elevando-o ao alto, fê-lo rodar como uma ventoinha tropical, para incredulidade dos gigantes que se tinham acautelado na sombra da taberna.
Apesar da vertigem, Noé prendeu as mãos ao umbral da porta e acertou com o pé nos queixos de Júlio, que tombou contra o cimento do chão.
Animado com a proeza, Noé deixou-se cair sobre o corpo do oponente e espetou as unhas na sua boca escancarada.
Quando as retirou, toda a gente viu que esguichavam sangue.
Júlio não teve tempo de verificar se lhe restava algum dente na boca. Depois de uma volta rápida sobre si mesmo, prendeu Noé pelas orelhas, fazendo-o guinchar como um porco de faca espetada na goela.
Toda a cidade se arrepiou. Nem nos tempos da inquisição os gritos dos torturados eram tão lancinantes.
A seguir, Júlio recuperou a posição vertical e escarrou golfadas de sangue para cima do inimigo. Este vociferou que o ia esmagar com os pés, dentro de segundos, ali mesmo à vista de todos, garantindo que não era por ele ter segurado e destruído seis camiões que seria o homem mais forte da cidade.
A ameaça deu origem a uma curta pausa na luta, que os dois contendores aproveitaram para se olhar de alto a baixo, estudando-se mutuamente, a fim de decidirem as tácticas que adoptariam nas próximas investidas.
Júlio não pestanejou, não mexeu um dedo, não buliu um músculo. Tinha o queixo descaído e sangue a escorrer da boca. Estava hirto, imóvel, petrificado. Uma aragem seria suficiente para o deitar abaixo do trono que há poucos minutos atrás parecia estar perfeitamente ao seu alcance.
Noé percebeu que aquele era o momento mais indicado para fazer vergar o inimigo. Só o ter-se-lhe deparado tão soberana ocasião levou-o a pensar que estava perante um milagre. Havia ali dedo da mãe. Intervenção divina, seguramente. O rival estava repentinamente distraído, de costas para uma janela, com um ar de mísero cadáver à espera de alguém caridoso que o depusesse na frieza da cova. Não ameaçava, não falava, não respirava.
Incendiado pelo sol que lhe entrava pelos olhos, Noé decidiu então avançar, para resolver de uma vez por todas o seu assunto com o gigante que nunca deixara de o humilhar.
Sem pressas, levou atrás das costas o braço hercúleo de guindaste com a mão fechada e atirou o soco de esfera demolidora contra o rosto deformado que tinha à sua frente.
Júlio, porém, acordou nesse preciso instante, reacendeu a chama que lhe faltava. Por isso, não faltou quem pensasse que aquilo era fingimento. Era truque para enganar o monstro que lhe pusera a boca naquele lastimável estado.
Quando a mão de Noé se encontrava a poucos milímetros do seu nariz inchado, Júlio desviou-se de forma rápida e ágil. O opositor perdeu o equilíbrio, precipitou-se na direcção da janela e acabou por estilhaçar o braço na vidraça.
Com um sentido de oportunidade escrupulosamente educado para ocasiões melindrosas, Júlio não deu tempo a Noé para avaliar as consequências da situação.
Puxou-o a si pela cintura, agarrou o braço ferido e pôs-se a chupar-lhe o sangue que corria desalmadamente pelas diversas torneiras da pele.
Com a mão que lhe ficara livre, Noé muniu-se de um pedaço de vidro e antes que Júlio o esvaziasse do sangue que lhe corria pelo corpo, desatou a enterrar o gume cortante na face de Júlio. Espetou aqui, aqui, aqui, sempre no mesmo sítio, para aumentar a profundidade do golpe. Retalhou a pele em vários tamanhos e direcções. Rasgou a fronte de um lado ao outro. Até que Júlio se viu perdido num poço de sangue. Levou as mãos à cabeça, deu duas voltas e reparou que nada via em redor.
Às apalpadelas, foi em busca de socorro nas saias de Dora.
Ao vê-lo chegar, aos tombos, marrando contra a porta estreita, sem atinar com a entrada, a mulher exclamou que não lhe podiam ter feito coisa melhor! Um dia, ele havia de tomar juízo.
Júlio desabou no chão, mesmo à porta de casa, do lado de fora, e ficou para ali a barafustar com ele próprio e com quem passava.
Noé não teve melhor sorte. Logo que se viu livre de Júlio, foi invadido por um grande frio e por uma palidez que só se compreendia numa pessoa que tinha ficado sem um pingo de sangue nas veias. Assustado com as caras perplexas dos gigantes que se aproximaram dele para avaliar o seu estado, sentiu um dor fina no peito e desmaiou.


IX

Ao acordar, ainda antes de saber se estava em casa, na taberna, ou no Paraíso, Noé tratou de ir arranjar umas ervas que lhe curassem o braço desfeito. Besuntou os cortes na mão e no antebraço e cuspiu sobre os ferimentos porque sempre lhe tinham dito que não havia melhor do que a saliva para aquelas situações.
Apetecia-lhe gritar por causa das dores e do ardume, mas conteve-se. Um gigante não se queixava das mazelas.
Olhou em volta e teve a certeza de que estava seguro em casa.
Enrolou o braço o melhor que soube nuns trapos de cozinha que ainda vinham do tempo da mãe. Rasgou uma ponta em duas com os dentes e deu um nó apertado para estrangular o sofrimento.
Andou assim por um período de várias semanas, pois uma ferida mais contundente teimava em não sarar.
Noé passou a aproveitar-se do facto, dizendo a quem quisesse ouvi-lo que aquele era o sinal da sua superioridade física, pois nenhum remédio conseguia estancar a força do pus infectado no seu corpo.
E quando o contrariavam, dava-se ao trabalho de desenfaixar o braço, para expor aos olhos dos gigantes a inflamação do vurmo acumulado. Espremia a ferida e fazia verter a matéria espessa em pingos bojudos sobre o chão. Depois, sublinhava que Júlio ficara em muito pior estado do que ele. E garantia que, se não o cegara com o pedaço de vidro no centro das órbitas fora porque Júlio fugira a tempo para debaixo das saias da mulher. Numa próxima vez, porém, ficassem todos certos, o seu maior inimigo não havia de escapar com vida.
Noé passava agora grande parte do tempo fora de casa, dando-se ares de rei destemido. Estava sempre à espera de ver o rival surgir de imprevisto na próxima esquina. Não se cansava de apregoar que estava preparado para o enfrentar a qualquer momento. Assegurava que não voltaria a deparar-se com uma situação idêntica à última, em que Júlio o atacara à traição. Aprendera a conhecer o adversário. Mesmo com o braço enfaixado, Noé insistia que Júlio duraria poucos segundos nas suas mãos, caso voltasse a atacá-lo.
Com receio de ser outra vez apanhado pelas costas, Noé raramente parava muito tempo no mesmo sítio.
Tinha sempre consigo uma caixa de cervejas, que ia bebendo aqui e ali, num banco de jardim ou contra uma parede, na companhia de três ou quatro gigantes que não hesitavam em fazer-lhe todas as vontades e que deste modo se sentiam protegidos da raiva dos outros gigantes. Além de tudo, sempre iam entornando umas cervejas.
Quando estava com os amigos, Noé contava histórias de quando era mais novo e de como as suas forças não tinham limite, ao ponto de por mais de uma ocasião ter deitado em fuga regimentos inteiros de soldados. Com duas ou três pauladas, ele afirmava haver saído vitorioso contra dezenas de ladrões, vigaristas, provocadores, polícias de farda e à paisana.
Ninguém o aguentava, nesse tempo. E, por isso, ele tinha vindo parar àquela cidade de gigantes piolhosos.
Segundo dizia, chegara a derrubar árvores com uma só mão. E arrancara também postes de luz uns a seguir aos outros, servindo-se depois deles para enfrentar quem se lhe opunha, até as forças da ordem, que há muito procuravam oportunidade para se verem livre dele.
Contava também que em jovem saltava de árvore em árvore com uma ginástica superior à de um símio habituado às andanças da selva. E que até certa vez houve uma equipa de cineastas que o convidou para um filme de aventuras. Ficara tudo combinado, o dia, a hora, o cachet, só que no primeiro dia de trabalhos os operadores de câmara não conseguiram captar as imagens das suas frenéticas habilidades em frente aos cenários da paisagem, tendo-se gerado uma confusão de fios enriçados com o realizador aos gritos sem saber o que fazer.
Noé foi despedido da sua única experiência como actor, por culpa da incompetência e saber dos técnicos de câmara, que se tinham revelado incapazes de orientar as suas façanhas logo que fora dado o sinal para a rodagem da manivela.
Ele decidiu então mudar de ares. Estava farto de não encontrar gente ao nível dos seus combates.
Um dia ouviu falar de um tal Júlio, cuja fama atravessara estradas e montes. Após a morte da mãe, decidiu abandonar tudo e pôr-se a caminho da terra onde vivia o gigante cujas proezas eram conhecidas a muitos quilómetros de distância.
A partir de então, como era sabido de todos, fora um nunca mais acabar de brigas e violência na cidade, que passou a depender quase só dos humores daquelas duas feras sem conciliação possível.
Noé e os amigos seguiam pela rua, em conversa animada, esvaziando garrafas que atiravam para a berma do caminho, quando verificaram que tinham ultrapassado os limites da zona urbana. Encontravam-se agora sob o fresco de árvores imensas que se multiplicavam num verde de sombras e melodias.
Os amigos de Noé tiveram o pressentimento de que o melhor seria regressarem. Talvez aquilo fosse uma ratoeira para os prender. Não se compreendia como tinham chegado tão depressa a uma das matas que circundava a cidade.
Mas Noé achou que não. E acusou-os de serem uns medrosos que por qualquer coisa se borravam nas calças. Ali, não havia mal nenhum, garantia. Se alguém tivesse a intenção de os incomodar, ele encarregar-se-ia de lhe dar uma lição, apesar de só ter um braço disponível para o efeito. É que os pés também contavam, e a cabeça, que saíra incólume da mais recente briga com Júlio. Portanto, nada havia a recear.
Continuaram o passeio para além da zona que conheciam e dominavam. E, num dado instante, houve um remexer de folhas a três ou quatro passos de distância, como se um bando de espíritos danados andasse a cercá-los.
Os acompanhantes de Noé recusaram-se a avançar, tremendo de medo pelo desconhecido que os esperava. Deram meia volta e desataram a correr como putos de colégio depois do assalto a um laranjal, indo barricar-se atrás das primeiras casas que serviam de frágil muralha à cidade de construções desengonçadas.
Noé ficou no papel de não poder dar parte de fraco. Quem se aventurara a combater Júlio da forma que ele o fizera não podia correr o risco de sofrer agora uma humilhação, fosse ela qual fosse.
Deste modo, ainda que não se sentisse muito à vontade depois da debandada dos amigos, Noé prosseguiu a sua marcha solitária, enquanto se esforçava por disfarçar os nervos. E entretinha-se a assobiar, de mãos nos bolsos, para dar imagem de um gigante desinteressado que não receava o que quer que fosse.
Os gigantes que tinham regressado à cidade ficaram a vê-lo de longe entornar a cabeça para trás, continuando a esvaziar garrafas, recortado no horizonte das folhas mais claras. Noé caminhava sem denotar qualquer preocupação com os ruídos invisíveis que o iam apertando cada vez mais. Qualquer um adivinharia os passos encobertos pelo arvoredo. Como um arame denso. Só Noé não se dava conta do perigo.
Demorou pouco tempo até que tudo se tornasse evidente.
Subitamente, viu-se uma dança de árvores, com troncos dobrando a cintura e folhas a despegarem-se dos ramos. O céu limpo encheu-se de trovoada.
Noé foi cercado a norte, sul, este e oeste. A investida paralisou-o. E permitiu que o assaltassem por todos os quadrantes. Tudo decorreu com tal eficiência e rapidez que se ouviu mesmo dizer que os agressores tinham utilizado métodos avançados para anular o poderoso gigante.
Só assim se compreendia que Noé tivesse cedido como uma andorinha, sem ao menos cuspir para a atmosfera um dos seus urros monstruosos capazes de incendiar as nuvens ralas que passavam velozes sobre a humidade.
Não conseguindo perceber o que sucedera, os amigos de Noé regressaram a casa cabisbaixos, depois de terem decidido que não falariam a ninguém sobre a ocorrência. Noé havia de saber desenrascar-se. De qualquer modo, a culpa fora dele, que teimara em continuar a aventurar-se por entre as árvores. Tanto quisera mostrar valentia que acabara por cair numa armadilha cujas consequências ainda estavam por saber.
Só no outro dia de manhã se soube da sorte de Noé. Os gigantes foram acordados por um ruído ligeiro de passos secretos junto à porta de casa do desaparecido. As mulheres vieram logo espreitar às janelas e viram todas as peças de roupa de Noé dependuradas no puxador. Não chegaram a tempo de ver mais alguém.
Quanto a Noé, que ninguém via desde o dia anterior, apareceu a descer a rua, mais tarde, completamente nu.
O seu corpo era uma massa enorme que apenas encontrava equilíbrio contra as paredes instáveis das casas. As peles flácidas tremiam-lhe como flores num jardim de Inverno. Noé só trazia resguardado em panos o braço por onde Júlio lhe sugara o sangue e o pénis do tamanho de uma abóbora, que era o seu motivo de maior orgulho.


X

Há já algum tempo que Júlio caminhava por uma longa estrada de asfalto brilhante. O coração batia-lhe em pancadas secas no peito pelo esforço despendido. Mas ele continuava em grandes passos disposto a ir até ao fim do percurso. Nunca o fizera, embora a paisagem despida lhe parecesse estranhamente familiar.
Júlio era acompanhado por uma música suave que não se percebia bem de onde vinha. Não se notavam por ali sinais de altifalantes ou de qualquer aparelhagem de som.
A estrada era sempre a direito e afunilava para o horizonte à medida que o olhar se estendia. Era uma recta lisa e perfeita, sem irregularidades no piso, nem flores nas bermas para distrair os viajantes.
Muitos destes vinham a quilómetros de distância de Júlio, que ia adiante na esperança de ver resolvido o seu caso com a maior brevidade possível.
Ainda pensou fazer uma espera para inquirir aos detrás se sabiam onde conduzia aquele caminho, mas desistiu da ideia, porque não queria que alguém mais atrevido se aproveitasse da sua curiosidade para lhe passar à frente.
Ao fim de uma quantidade de tempo, o gigante chegou a uma bifurcação na estrada. Deteve-se e pôs-se a pensar qual dos caminhos devia seguir.
Verificou que havia duas placas. Uma dizia que o caminho da direita dava para o Céu e a outra que o da esquerda dava para o Inferno.
Júlio ficou perplexo perante o dilema. Pôs-se a fazer contas à vida. Avaliou as consequências da escolha que faria.
De um lado estava Deus, do outro o Demónio, ambos dispostos a tornarem-se donos das consciências, concedendo o prémio ou o castigo pelos actos cometidos na Terra.
À primeira vista, o gigante preferia o Inferno, pois o Demónio, rei das trevas chamejantes, sendo o contrário de Deus, tinha falta de atributos. Se assim não fosse, poderia ser considerado outro Deus, hipótese pouco provável, já que era por demais sabido existir só um Criador de todas as coisas.
Convinha-lhe ficar sob o domínio do mais fraco, ignorante, estúpido, volúvel. Para que, um dia, tivesse hipóteses de o vencer num eventual combate de corpo e tomar o poder no reino das chamas. Se Júlio o conseguisse, faria uma revolução em toda a linha nos domínios do mal.
O Paraíso não atraía Júlio. Imaginava o espaço de Deus segundo as regras fundamentais da monotonia, da rotina, do aborrecimento. No seu entender, Deus devia ser muito desprovido de imaginação porque submetia as pessoas a uma obediência de carneiros sem criatividade. Só queria paz, paz e mais paz.
Ora, se Júlio fosse para o Céu, contra quem iria lutar? Ele não era homem para se deixar cair numa situação de conformismo.
Tirarem-lhe o espírito briguento seria o mesmo que anularem a sua identidade mais profunda.
Júlio nunca se tinha submetido à vontade de alguém. Não seria agora Deus a conseguir a sua rendição.
Além disso, que haviam de dizer os outros gigantes, quando no futuro recebessem a informação de que ele andava misturado com os santos e os anjos no Paraíso em devoções e cânticos laudatórios a um indivíduo que passava o tempo a cabecear de soneira na poltrona da eternidade?
Perderiam o respeito pela sua memória e naturalmente escarrariam sobre o pedaço de terra ao qual o seu corpo descera.
O Inferno era o local mais indicado para Júlio habitar, porque lá se encontravam pessoas inteligentes e insubordinadas, em grandes festas de bebedeiras e folguedos de danças por entre o frenesim das labaredas.
O Inferno devia ser mesmo um inferno, imaginava Júlio. Devia ser o fosso onde ninguém tinha mão sobre ninguém, cada um fazia o que queria e todos tinham razão.
Júlio estudava já a maneira de se opor à anarquia reinante no país do Demo, onde não faltariam de certeza, presidentes, reis, ministros, ladrões, vigaristas, padres, jornalistas, polícias e empresários.
Na sua opinião, o Inferno não devia ser muito diferente da cidade para onde os gigantes haviam sido escorraçados. E a experiência adquirida junto dos monstros havia de lhe valer alguma coisa.
Utilizaria a sua capacidade de observar os pontos fracos do inimigo. Far-se-ia ingénuo, simularia raciocínios vagos e lentos. Até ao dia em que organizaria um exército com base nos reles condenados a quem ninguém dava importância.
Depois, partiria à conquista do Paraíso. Se o Criador era bom, calmo, pacífico e sem rancores, como constava, seria relativamente fácil chegar junto d’Ele, e simplesmente sugerir com palavras dóceis que tivesse a fineza de abandonar o seu trono. Porque a sua hora tinha chegado.
O mais provável era que o Sumo Poderoso lhe fizesse a vontade sem pestanejar. Ou não fosse a obediência a regra-mor nos seus domínios.
Era difícil de crer que os anjos esboçassem qualquer reacção ao inesperado assalto. Toda a gente sabia que os anjos são leves e puros, incapazes de qualquer agressão, ainda que em defesa do seu Senhor. Tinham sido educados para servir e embelezar os recantos do Céu, tal como as estátuas nos jardins e nas praças públicas. Por isso, haviam de mostrar-se inofensivos perante quem desse provas de engenho e força para ocupar o assento onde os destinos dos homens se decidiam.
Nessa altura, Júlio estava convicto de que poderia finalmente tratar com justiça dos seus negócios pendentes com Noé.
Lá de cima do trono usurpado a um Deus frouxo e sem iniciativa, ele faria do eterno rival um autêntico fantoche na ponta dos seus dedos. Exigiria que Noé se lhe ajoelhasse aos pés, caso pretendesse voltar a ver a mãe, que andaria entrevada num beco a recolher carvão para aquecer a água em que Júlio se banharia com as maiores beldades, loiras, ruivas e negras. Tudo livre e sem discriminação. E se Deus quisesse voltar a merecer um lugar no Céu, teria de passar pela prova do Inferno, sem a qual ninguém tem o direito de orientar ou decidir sobre as vidas alheias.
Assim, o destronado teria a possibilidade de, posteriormente, voltar ao convívio com os seus, agora já não servos, mas iguais. A intenção de Júlio era fazer do Paraíso um lugar onde todos pudessem ser verdadeiras pessoas, devendo aproveitar-se a verdura e beleza dos campos para um tempo de riqueza e perene vivência dos frutos.
A decisão estava tomada. O Inferno esperava por Júlio.
Mas quando ele se preparava para avançar na direcção dos reinos demoníacos, alguém lhe pegou no braço e puxou para trás...
Júlio perdeu o equilíbrio, cambaleou, agarrou-se a uma nuvem e recompôs-se. Abriu os olhos, demorando uns segundos a compreender o que se passava.
Acabara de se libertar das garras da morte que tinha passado à porta de sua casa para o levar. Mas houve alguém que o despertou de repente, chamando-o à realidade, antes que fosse tarde demais.
Apesar do atordoamento que sentia, Júlio ainda pensou voltar atrás para trocar as placas que assinalavam a direcção do Céu e do Inferno e assim influir no destino das gentes que caíam nas garras da morte. Mas reflectindo melhor, achou que não valia a pena arriscar. Podia já não ter tempo para regressar à cidade são e salvo.


XI

Durante uns dias, Noé teve vergonha de aparecer na taberna. Sentia-se corar da cabeça aos pés só de pensar no que os outros gigantes diriam de ele ter estado tanto tempo fora da cidade e, por fim, ter regressado nu, à vista de todos. Sem que houvesse qualquer explicação razoável para o facto.
Mas até lhe dava um certo jeito ficar uns tempos retido em casa. É que a carta enviada do Paraíso, conforme a mãe prometera, poderia chegar a qualquer momento. E ele estava bem precisado dela para voltar aos jogos da taberna. A missiva divina seria o certificado de garantia de que Noé era realmente o homem mais forte da cidade. E faria esquecer as suspeitas levantadas pela sua última desventura na mata...
Contudo, o embaraço de Noé só se manifestava durante o dia. Porque, à noite, ele continuava a fazer as escapadelas do costume. Descia a caves remotas inundadas de fumo e silhuetas macabras à roda de mesas, em torno das quais as conversas eram iluminadas por candeeiros a petróleo.
Quanto a Júlio, depois de recuperado da bebedeira, passou a ocupar-se da desmontagem, peça por peça, dos camiões que ele próprio destruíra. Com a ajuda dos filhos, ia transportando para a oficina os restos aproveitáveis dos metais que a sua fúria retorcera e amachucara. Fazia-o com tal zelo que até parecia que há muito acalentava o sonho de se apoderar de tanta chapa amolgada e partes de motor que o haviam de ajudar a passar as horas entre as bugigangas na oficina.
Júlio e Noé atravessavam agora uma fase mais recatada nas suas vidas, uma espécie de intervalo até à próxima briga, mas nem por isso a cidade estava mais calma. Porque se ouvia dizer que uma mulher vestida com uma camisa de dormir quase transparente andava a percorrer as ruas durante a noite. Contava-se que se deslocava em bicos de pés, dando voltas completas à cidade por entre os lençóis escarpados da noite sem berço. Mas quando ela passava junto às casas, os gigantes ficavam com rolos de saliva a deslizar pelos dentes escurecidos.
A dita mulher falava sozinha durante as suas evasões, e se não falava sozinha falava com a sombra escorregadia que lhe andava no encalço. E também se dizia que ela cantava, em vez de falar. Que tocava flauta para enfeitar os sonhos dos gigantes.
Só que, no outro dia, toda a gente acordava meio atarantada, com a cabeça pesada e húmida, sem saber porquê. Tinham apenas uma vaga ideia de que qualquer coisa acontecera. Procuravam recordar-se, mas não conseguiam. O que lhes restava era uma espécie de açúcar amargo na lembrança.
A mulher que vagueava pelas noites chegava mesmo por vezes a sair dos limites urbanos. E teria ganho o hábito de se perder por entre a folhagem das matas circundantes, sem que, pelos vistos, fosse atacada por estranhos e devolvida nua à cidade, tal como acontecera a Noé. Por essa razão, passou a ser temida por todos. Uns consideravam-na deusa, outros bruxa. E ninguém se atrevia a impedi-la de realizar a sua liberdade.
A horas muito pouco recomendáveis, não faltou quem a visse com frequência regressar a casa cerca das cinco da manhã, em pontas de pés, por cima de muros, telhados e chaminés, em passos alegres, atravessando courelas e hortas, riachos e canaviais que lhe deixavam na pele marcas azuladas e roxas.
Porém, seria difícil identificar posteriormente a mulher por esses sinais, pois todas as gigantas tinham marcas idênticas provocadas pelas pancadas que os maridos lhes davam quando chegavam a casa derreados de bêbedos.
Também corria o boato de que a mulher podia ser uma alma penada, que cirandava pela cidade atolada em remorsos. Por exemplo, alguma jovem enviada pela mãe de Noé que, depois de ser informada do último vexame por que o filho passara, lhe pedira para entregar a carta na qual se afiançava, letra por letra, que Noé era o homem mais forte da cidade. Só que a mensageira se teria perdido pelas ruelas e não havia maneira de atinar com a caixa do correio da casa onde Noé vivia. Por isso, vaguearia pela noite dentro, deixando os gigantes desnorteados.
Contudo, havia quem defendesse que a estranha mulher seria uma giganta em carne e osso que simplesmente não se resumia aos prazeres de um só homem.
Por isso, havia muitos gigantes sem pregar olho atrás das janelas, a ver quando ela passava. Depois, logo que ela aparecia, punham-se a retorcer as pálpebras e a assobiar baixinho. Algumas gigantas acordavam e perguntavam o que estava a acontecer. Então, eles voltavam logo a seguir para a cama, indo enterrar-se entre o calor das pernas delas. Depois de se terem satisfeito, iam de novo vigiar para trás da vidraça.
Dizia-se que a mulher lançava maus olhados a certos gigantes que, ultimamente, tinham mesmo passado a dormir toda a noite com os narizes encostados à janela. Alguns deles passaram a ser mais intolerantes com as mulheres, espancando-os sempre que elas insinuavam alguma coisa sobre as insónias deles.
As mulheres tinham-se habituado a tudo. Às bebedeiras dos maridos, à solidão, à pancadaria de que eram vítimas, aos filhos ranhosos e sebentos, só não estavam preparadas para as andanças libertinas de uma mulher tresloucada que ameaçava o futuro de todos. As suas vidas de pedra transformaram-se em dias e noites de chumbo. Muitas gigantas passaram a rezar pela salvação da cidade. E choravam sempre que a noite se aproximava. Como se houvesse um arame farpado a apertar as consciências.


XII

Agora que Noé estava quase sempre em casa, não tinha oportunidade de resolver os seus assuntos nas idas à taberna e às caves onde à noite se sumia.
Por isso, começaram a reunir-se gigantes à sua porta. Procuravam não dar nas vistas, mas percebia-se que ali havia coisa, por causa dos murmúrios e falas cautelosas. Em certos dias, as pessoas chegavam mesmo a fazer bicha, à espera de serem atendidos. Negócios, acordos, sabe-se lá, o que podiam querer de um homem que passava as horas à espera que a mãe lhe enviasse uma carta do Paraíso!
Frequentemente, a procura dos serviços de Noé continuava pelas noites dentro.
Às vezes, Noé vinha à janela espreitar, olhava à direita e à esquerda e, se via motivos disso, saía de casa, dava a volta à fechadura, dizia que era só um instante e desatava a correr pela rua na direcção de uma cave mal iluminada, onde se sabia estar o centro de decisão dos casos mais complexos.
Noé só era esperto de garganta. A massa do cérebro escasseava. Por isso, ele servia bastante de intermediário na resolução dos assuntos que lhe passavam pelas mãos. Necessidades urgentes de vária índole, empréstimos de dinheiro, pedidos de graças a uma santa, contrabando de alimentos e outras mercadorias, consultas à Bíblia, auscultações de hipóteses de viagens para outros países onde os gigantes pudessem viver em liberdade entre vulgares cidadãos.
Ele assentava tudo para não se esquecer. Por vezes, resolvia o caso no momento, mas outras vezes adiava, respondia que ia ver o que podia fazer, talvez fosse possível arranjar alguma coisa, apesar de a situação estar difícil...
De uma forma ou de outra, conseguia sempre transmitir alguma esperança aos que o procuravam. A maioria dos pedidos que faziam, porém, dizia respeito a dinheiro emprestado para pagar os fiados das bebedeiras. Um dia, acabava-se o crédito e os gigantes não podiam deixar de beber. Então, iam a correr ajoelhar-se diante de Noé, que aproveitava para subir as condições dos empréstimos.
Grande parte deles vivia acima das suas posses. O dinheiro que a maioria recebia do Governo esgotava-se em pouco tempo. Depois, era preciso fazer milagres para arranjar verbas. Muitos gigantes chegavam a oferecer os filhos em troca de finanças. Ou recorriam a outros esquemas.
Desta forma, Noé ia enriquecendo, ao contrário das aparências enganadoras. Teve sempre metal reluzente para comprar as incontáveis caixas de cerveja que se empilhavam na sua cozinha. Além de se murmurar que tinha fabulosas contas bancárias.
Certa noite, havia uma giganta no último lugar da bicha à porta de Noé. Toda ela parecia um embrulho de cobertores e xaile pela cabeça. Sinal de apoquentação máxima.
Todos sabiam de quem se tratava. Mas Noé teimava em não querer ajudá-la. Duas noites antes tinha-a mesmo acompanhado à porta de casa com palavras azedas e empurrões.
Porém, a mulher ali estava, de novo, cada vez mais sumida sob a grandeza do sofrimento que trazia no peito. Quando reparava que estavam todos a olhar para ela, puxava o xaile para o nariz, num gesto inútil de acanhamento.
A giganta, que perdera o marido dois anos antes, não desanimava. Mantinha-se de pé durante horas, até que Noé decidisse resolver o seu assunto.
A viúva não se dava bem na cidade. Os calores húmidos faziam-lhe mal, retorciam-lhe as veias do coração, enchiam-lhe a cabeça de marteladas contra os olhos. Por isso, ela acalentava o desejo de partir para outros lugares, talvez um país onde o ouro saltava directamente da terra para a mão das pessoas.
O problema é que não tinha posses para fazer a viagem. Daí a sua insistência junto de Noé para que a ajudasse. A mãe dar-lhe-ia a recompensa merecida na carta que estava para chegar. Assim como outras maravilhas que o gigante havia de ter para o resto da vida. Ela rezaria a todos os santos para que Noé vencesse Júlio no mais curto período de tempo possível.
A mulher fora ao ponto de se oferecer para descobrir que tipo de experimentações e engenhocas Júlio andaria a tecer na sua oficina para depois vir contar tudo a Noé. Desta maneira, ele poderia preparar-se com os melhores argumentos para o próximo confronto com o seu maior rival.
E as viúva também disponibilizou os seus préstimos para limpar a porcaria que se multiplicava por todos os quartos e frestas de paredes desde o baile de gigantes que se realizara em casa de Noé. Mas este mantinha-se insensível e indiferente.
Para já não falar do pormenor de a viúva ter sido amiga da mãe de Noé, desde a idade de uns namoricos puros que nenhum mal trouxeram ao mundo. Ambas sempre tinham sido dignas do maior respeito nos seus comportamentos. E só perderam o rasto uma da outra a partir do dia em que a mãe de Noé passara a ter que debater-se com um gigantinho aos pontapés no seu útero. Noé começava cedo a ensaiar os primeiros golpes de ataque e defesa, que muito lhe haviam de servir pela vida fora.
A tudo o que a viúva pedia, oferecia, explicava, disponibilizava, Noé respondia com ouvidos de mouco. Mas nem assim ela desistia. Deixava-se estar sempre na bicha, com a cabeça descaída, fazendo lembrar um novelo que não mostra as pontas. Só corria o risco de ver cair por terra a sua esperança, caso Noé perdesse a paciência e a afastasse da sua porta de uma vez por todas.
A bicha diminuía para toda a gente menos para a viúva. E houve uma altura em que ela olhou à sua volta e verificou que estava sozinha.
Pouco depois, a porta abriu-se e Noé apareceu com um gigante dependurado na mão. A vítima esperneava e pedia clemência. Contudo, Noé não estava para aí virado. Avançou para o meio da rua e pôs-se a andar com ele à roda como se se tratasse de um saco de batatas. A seguir, largou-o!
O miserável foi cair de ventas na lama, com os membros virados cada um para o seu ponto cardeal. Mas logo a seguir levantou-se com redobrada genica e desapareceu na escuridão sem dar tempo a Noé de o arremessar novamente. Era um caso perdido.
Sem saber como, no meio da confusão que se gerou quando Noé arremessou o gigante ao deus dará na escuridão, a viúva reparou que tinha perdido o xaile que a cobria e resguardava dos olhares menos discretos.
Ao reentrar em casa, Noé confundiu-a com outra pessoa. Não estava habituado a vê-la tão desprovida de agasalho.
Ela percebeu o que se passava e não perdeu tempo para negociar a sua situação. Antes que Noé se desse conta do logro.
Puseram tudo no seu devido lugar, esclareceram dúvidas, marcaram prazos, estipularam condições.
A finalizar a conversa, quando a viúva se esgueirava manhosamente na direcção da porta de saída, Noé foi atrás dela e sugeriu que naquela noite ela deixasse aberta a porta traseira da casa onde vivia com a filha, pois ele se encarregaria de aparecer depois da meia-noite para dar um ponto final no assunto...
A viúva respondeu com uma gargalhada e disse que Noé não precisava de se incomodar. Tudo se resolveria se fosse ele a deixar a tranca da sua porta ligeiramente fora do trinco...
Com esta, a giganta saiu e pôs-se a procurar o xaile que lhe havia caído no meio da rua. Encontrou-o, cobriu-se e afastou-se, no instante exacto em que se ouvia ao longe a melodia de uma flauta, que havia de deixar muitos gigantes a revirar-se de frios acalorados na espinha da cama.


XIII

No casebre onde vivia, Júlio acordava agora assiduamente durante a noite, com as formas da chaparia e parafusos dos camiões a bailarem-lhe nas vistas por entre a matéria ramelosa acumulada.
Ele via Dora muito bem estendida a seu lado na cama, com um ar de relva púrpura na face. A agitação das noites avivava o sangue por todo o corpo da mulher e humedecia-lhe a intimidade. Então, o gigante enrolava-se nela, ardorosamente, à semelhança do que fazia nas brigas com Noé.
Dora desatava aos risos, mesmo a dormir, sempre a dormir. O seu sono era uma aragem fresca sobre a pele de seiva.
Nessas alturas, Júlio não tinha razões para lhe bater com a fivela do cinto, ou com o cabo metálico da vassoura. Estava atordoado pelo álcool e pelas dúvidas que começava a alimentar acerca do comportamento da mulher.
Quando percebia o que se passava na cabeça do marido, Dora mostrava-se arrediça logo depois de o ter atraído. Hesitante, vagamente incomodada.
E saltava para fora da cama, equilibrando-se a custo por entre os corpos amontoados dos filhos a toda a largura do quarto, para se ir pentear diante do espelho. O seu reflexo agigantado dificilmente cabia dentro da moldura. Por isso, ela tinha de escolher os ângulos de exposição à medida que desenriçava as tranças que lhe caíam sobre as costas.
Daquela posição, Dora conseguia ver Júlio através do espelho, de costas viradas para ela, subitamente esquecido dos apetites, roncando como um monstro no ar pesado da noite. Mas isso não queria dizer que ele estivesse a dormir. Podia estar apenas a estudá-la, no meio dos seus rancores tenebrosos e ciúmes enjaulados.
O corpo de Júlio mantivera a impaciência ao longo dos anos. Ele tinha um espírito que a mulher não dominava nem entendia. Era diferente todos os dias, quando a agredia, quando a acariciava, quando a desprezava. Até nos sonhos, era imprevisível. Por isso, era legítimo que aspirasse ao trono de o homem mais forte da cidade.
Ela afastava-se do espelho, deixando cair os pensamentos menos esclarecidos. Sentia que não podia ficar na cama sem nada fazer durante toda a noite, quando o sono lhe fugia da alma, deixando-a só e desamparada.
Dora queria demonstrar à viva força que era mais limpa do que a generalidade das gigantas. Mas evitava as lavagens durante o dia para que não percebessem os segredos da sua higiene. Então, quando todos dormiam a bom dormir, quando terminava os seus penteados diante do espelho, ela punha-se a carregar baldes de água que ia encher à fonte pública, munia-se de esfregona e sabão, e desatava a lavar o frontispício da casa. Atirava baldes de água contra as paredes e as janelas, esfregava, voltava a baldear, voltava a esfregar...
Na manhã seguinte, a sua casa estaria alva e cheirosa por algumas horas, até que os filhos acordassem e se pusessem a revirar e sujar tudo o que encontravam à mão.
Na noite seguinte, ela deixar-se-ia cair na cama, esgotada de inchaço, devido ao esforço despendido nas limpezas.
E não ligava a Júlio, que passava horas a olhar para o seu tornozelo direito, como um desassossego que não cabia debaixo do lençol, até se afundar na bebedeira do sono.
Ao ver a mulher daquela maneira, indiferente e extenuada, Júlio começou a coleccionar ideias estranhas na cabeça. Foi deixando de repousar como um elefante.
Saía para a rua, vagueava por becos e traseiras de casas, por ruas que subiam com a sensação de descerem.
O gigante desconfiava que o perseguiam. Debatia-se contra a multiplicação dos perigos que lhe apertavam o cerco.
Nas noites em que deambulava por toda a cidade, nem a mulher de camisa de noite transparente se atrevia a aparecer pelas redondezas. E o próprio Noé apressava as consultas em sua casa.
Mas, por mais voltas que desse às reflexões, Júlio acabava sempre por ir sentar-se no degrau de pedra à porta da oficina, onde tinha infalivelmente à sua espera a cadela que lhe guardava as bugigangas.
Ela estava grávida e carente e punha-se lamber-lhe os tornozelos, reconhecida pela sua presença.
Ao repeli-la com o bico do pé, o gigante obrigava-a a afastar-se para uma distância prudente, fixando nele olhares sábios e ressentidos.
Mas pouco depois a mágoa desvanecia-se e a cadela reaproximava-se, lentamente, conseguindo que Júlio lhe cedesse um espaço a seu lado. Feitas as pazes, ela deitava-se e reclinava o focinho sobre as patas.
Ao fim de algum tempo, em que os dois aproveitavam para analisar as razões na cabeça um do outro, Júlio descalçava os sapatos e punha-se a mexer os dedos do pé, a fim de os exercitar minuciosamete para a próxima luta com Noé.
A cadela, então, rastejava em direcção aos pés do gigante, como se não pudesse resistir aos seus apelos e com a ponta da língua humedecida acariciava-lhe os dedos, as unhas, os ardumes das saliências e reentrâncias.
Não podendo controlar as sensações, o gigante desatava a rir numa convulsão que se estendia sobre a cidade como uma trovoada imensa de latas a chocalhar.
As gaitadas de Júlio pareciam ser uma resposta, ainda que tardia, aos risos desconcertados de Dora, quando ele se engalfinhava nela para lhe sugar as partes tenras e lhe deixava marcas arroxeadas na pele, que haviam de misturar-se depois aos sinais de violência com que ela já se habituara a ser prendada por ele.
Nos intervalos das gargalhadas que as lambidelas do animal faziam despertar em Júlio, levando-o a cuspir labaredas sonoras para as nuvens, o gigante deu-se conta da interferência de uma voz feminina à solta nas ruas.
Fazia lembrar as manhãs em que os galos se põem a cantar ao desafio pelas encostas ainda pouco visíveis de uma claridade rarefeita na poalha da noite.
Era a primeira vez que tinha uma percepção tão nítida da presença da mulher que dava a volta à cabeça dos gigantes com a transparência da sua camisa de dormir.
Agitada com a cena, a cadela de Júlio desatou numa roda viva atrás da própria cauda, largando depois a correr pelas ruelas sombrias da cidade, como se houvesse alguém com uma rede a persegui-la.
Júlio deixou de rir. Com um pé descalço e o outro no sapato, arrancou dali para fora, em busca da voz feminina, ou em busca da cadela. Ambas estavam perdidas no abismo das casas.
O gigante encheu-se de fé, a ver se encontrava um rasto de cabelo, pulseira, xaile, debaixo dos lampiões, rente às fechaduras das portas...
Ao passar junto da casa de Noé, percebeu que a melodia perturbadora vinha do sótão, onde se via uma luz mortiça na janela furtiva. Não podiam restar dúvidas. A mulher de camisa transparente estava aninhada nos braços do seu grande rival.
Ficou à escuta dos gemidos amorosos, remoendo-se-lhe os fígados segundo a cadência dos bemóis na boca ardente da mulher. E Júlio ouvia ainda o resfolegar das notas graves que o órgão do adversário fazia transbordar no peito de foles incansáveis.
Júlio não descansaria enquanto não soubesse a identidade daquela mulher que se rebolava na cama do seu grande inimigo. O desfecho do último combate entre os dois poderia estar nas mãos da misteriosa giganta. E ele tinha que acautelar-se. Para não perder o controlo da situação.
Os sinos tocavam a rebate na sua cabeça. Pareceu-lhe pouco oportuno invadir de surpresa a alcova do rival, que podia muito bem ter-lhe preparado uma armadilha.
Júlio pôs-se a andar nas ruas, para um lado e para o outro, sem se preocupar com o rumo que seguia.
A sua inquietude fazia lembrar a roda-viva da cadela atrás da cauda. A transpiração caía-lhe em pingos grossos pelas costas. Apesar de todas as voltas que deu à imaginação, Júlio não conseguiu identificar a mulher que estava no sótão de Noé.
Ao fim de umas horas, a voz feminina desapareceu e a luz apagou-se na janela do seu rival absoluto. A giganta estava realizada e Noé também. A calma desceu sobre a cidade.
Sem saber como, Júlio deu por si a poucos metros da porta da sua própria casa. A porta onde tantas vezes entrava aos urros e cabeçadas. Estava desnorteado com o que ouvira. Os gemidos da giganta faziam eco nos seus ouvidos. Júlio sentia-se estranhamente próximo deles. Mas isso não fazia sentido, porque ele nunca vira semelhante mulher em dias de sua vida.
Júlio olhou para o chão e viu uma aliança a brilhar, um anel tão grande como um arco de brincadeira infantil esquecido sobre o asfalto. Parou e observou com toda a atenção. Pareceu-lhe o anel que oferecera a Dora no dia em que tinham legalizado a união das suas vidas.
O gigante sentiu um abalo na massa do coração. Entrava ou não entrava, era o seu dilema. Pegou no anel, procurou a chave de casa, mas não a encontrou nos labirintos do bolso. Enfiou uma joelhada na porta, arrombando-a, e só se deteve, lívido de rancores, junto à cama, onde a mulher dormia tranquilamente rodeada dos gigantecos e gigantinhos.
Com as vistas em brasa, Júlio procurou a dobra do lençol sobre a qual a mão esquerda de Dora repousava. E a comprovar a sua desconfiança, lá estava realmente o dedo com a falta do anel.


XIV

Acordada por uma lucidez repentina, Dora abriu os olhos semelhantes a duas folhas de ave e fixou o marido. Este não esboçava qualquer gesto de agressão, apesar da descoberta que fizera do anel a curta distância da porta de casa. Júlio parecia estar preso a uma única ideia, que lhe entrava pelas vistas, e que se espraiava por todo o seu campo de raciocínio, fazendo lembrar um monstro marinho com o dedo desconfiado no gatilho.
Com um monte de buzinas a apitar junto às suas têmporas, Dora saiu da cama e sentiu-se invadida por uma daquelas venetas que lhe dava uma grande vontade de dominar à esquerda e à direita.
Enfiou a sua melhor roupa a um ritmo indescritível, enquanto ia e vinha em gestos determinados através da casa, gancho de cabelo estudado no reflexo ainda escuro do vidro, colar a seguir, brincos do tamanho de relógios, meias longas esticando as pernas sentadas à beira da cama, presas a ligas que as seguravam perto das coxas. Dava a impressão de a mulher estar disposta a um sério ajuste de contas com alguém.
E talvez por isso ela saiu de rompante porta fora, ouvindo-se depois o matraquear dos seus passos a afastar-se numa progressão que rapidamente diminuía com a distância.
Júlio ficou sentado na cama, sem nada dizer. Apenas com o dedo no gatilho da imaginação. Mas sem conseguir disparar contra uma mosca.
Dora foi bater à porta da viúva, que passara as últimas noites pacientemente na bicha para resolver um negócio com Noé.
O mundo ganhou as cores vivas de um arraial nos pensamentos de Júlio. A única certeza que tinha era a da sua mão fechada no bolso agarrando o anel de todas as suas dúvidas. Estirou-se na cama e deixou-se estar, vestido, calçado, com os olhos fixos no tecto.
A certa altura, chegou-lhe aos ouvidos uma enxurrada de gritos. Havia mulheres à bulha, pensou.
Levantou a cabeça, para a desentorpecer. Os gritos que ouvira não seriam nada de especial. A avaliar pela distância, Dora devia andar por lá perto. Ou saber ao menos o que se passava...
Depois de bater à porta da viúva, ela ficara à espera que a atendessem. Tinha a alma afundada num reboliço de formigueiros cruzados.
Veio abrir a porta uma jovem desgrenhada com as franjas da camisa de dormir a arrastar pelo chão dos pés nus.
Logo que a viu, Dora atirou-se a ela, de unhas afiadas. Puxou-a para a rua, agarrando-lhe a cabeleira com as mãos e obrigando-a a inúmeras voltas de pião.
Apanhada de surpresa, a mulher não reagiu. E deixou-se cair no sítio para onde a força de Dora a atirou.
A mãe apareceu aos gritos pelo corredor, como quem dirigia uma filarmónica desafinada. Mas a filha já dera sinal de si, prontificando-se a aumentar a gritaria e a reagir com todos os seus direitos de giganta ferida.
As duas mulheres envolveram-se numa luta de beliscões a arranhadelas, cada uma agarrada aos cabelos da outra, esticando-os até arrepiar.
Júlio irrompeu na esquina, mais tarde, para saber a causa exacta dos berros. Percebeu que Dora não perdoava à rapariga a ideia de que ela andaria envolvida com o marido, desde a noite em que tinham começado as cantorias sobre as chaminés dos gigantes adormecidos.
Desinteressado do que via, o apático gigante saiu dali, talvez à procura da cadela esbaforida e grávida que se perdera no desassossego das ruas. Após o reencontro, ele havia de lhe dar a lamber, de novo, as feridas.
Na esquina por onde Júlio se esfumou, os rostos esgrouviados foram aumentando em número e curiosidade. Os becos e as janelas encheram-se. Em aparente resposta à viúva que esbracejava em volta das mulheres desavindas. Parecia ter um demónio dentro dela.
Ninguém dava mostras de estar interessado em acabar com a briga. Todos queriam ver, apenas ver.
Nem as próprias gigantas, que se iam ferindo com dentadas intempestivas uma na outra, davam importância ao que acontecia em seu redor.
No entanto, a filha da viúva acabou por se desenvencilhar dos dentes de Dora e refugiou-se em casa, quando menos se esperava.
Contudo, reapareceu pouco tempo depois, dando-se ao trabalho de expor uma quantidade de gavetas na rua. E chamava a atenção das pessoas para a limpeza das roupas que tinha em casa.
Segundo dizia a quem a quisesse ouvir, nunca tinha conhecido cama diferente da sua. Muito menos a de Júlio, que era porca e imunda, covil de percevejos barrigudos.
A jovem brandia cada uma das suas peças, levantava-as no ar, como prova de verdade. A mãe, continuando a esbracejar, vinha ajudá-la e repetia letra por letra tudo o que a filha dizia.
Só faltava àquela espécie de leilão improvisado no meio da rua um altifalante de vendas apressadas em feiras ciganas. Mas elas não se preocupavam com isso. Porque uma goela de giganta valia facilmente uma dúzia de aparelhagens sonoras!
Apesar do chinfrim esganiçado de mãe e filha à volta das gavetas desarrumadas, Dora não desistiu das suas acusações. Insistia em esclarecer o que se havia passado nas noites mais recentes. E continuava a afirmar que a filha da viúva era a alma penada que inundava a cidade de vibrações, plantando fios de medo rente aos jardins e postes de candeeiros. Na sua opinião, a voz era a mesma. E a melodia também era muito semelhante a uma outra que certa vez a ouvira cantar distraída, ao fim de tarde, quando vinha de casa de umas amigas.
Este argumento de Dora incendiou as curiosidades cada vez mais amontoadas. E a resposta veio da viúva. Que levantou as saias com uma prontidão inesperada, pondo a descoberto as nádegas abauladas e alvas. Ao mesmo tempo, batia desalmadamente no próprio rabo, com chapadas de mão aberta.
A velha garantia que o altar do seu corpo era mais sagrado e imbuído de incensos do que uma píxide de hóstia benta no sacrário. E com a filha, que lhe tinha seguido o exemplo, passava-se o mesmo. Se alguém não acreditava, que o provasse ali mesmo, diante de todos. Caso contrário não tinham o direito de andar a caluniar quem era honesto e trabalhador. Até mesmo quando fora necessário ir a casa de Noé, por diversas vezes, ela mesma se tinha sacrificado, já de propósito para não dar oportunidade às más-línguas.
Mas Dora não estava disposta a deixar-se vencer por uma qualquer linguaruda esperta e atrevida. Por isso, atirou-se ao chão, rebolando como uma doida e vomitando frases sem nexo.
A multidão quase enlouquecia. Parte apoiava a viúva e a filha, parte apoiava Dora. Gritavam todos ao mesmo tempo, como se o desfecho daquela briga pudesse depender dos desejos de cada um. Ninguém se entendia. Entre os que puxavam para um lado e para o outro, não havia duas pessoas que pudessem ter o mesmo pensamento.
As brigas entre gigantas tinham o condão de acirrar os ânimos da assistência, ao contrário do que acontecia quando os dois monstros da cidade se enfrentavam...
Enquanto rebolava no chão, Dora queria dizer que era fiel ao marido. Mas não se percebia qualquer palavra que saía da sua boca. E ela voltava a rebolar sobre si mesma, querendo dizer a todos que fossem ver a brancura das paredes de sua casa. Em vão. Só se ouviam gritos desarticulados, sílabas soltas, gemidos e urros.
De repente, deteve-se e tentou revelar aos presentes que mãos algumas jamais a haviam tocado, a não ser as grossas e enferrujadas de Júlio. Depois, ficou subitamente, imóvel e pálida. E pôs todos em transe maior, ao encostar a face à terra batida do caminho. Após uns segundos de auscultação, não conseguiu suster um ligeiro grito. À distância, ouviam-se rumores de cascos. Rumores de cascos em direcção à cidade.
Era sempre assim. Quando alguém encostava o ouvido ao caminho era sinal de que algo de terrível estava para acontecer. Por isso, o povo recorria a este método como forma de prever o futuro.
Os mais curiosos também se puseram à escuta no chão. Confirmaram o perigo. E precipitaram-se na fuga.
Muitos gigantes e gigantas foram com eles. Iam apinhados, aos encontrões, como se tropeçando uns nos outros, antes que fosse tarde de mais.


XV

Eram bestas desvairadas que vinham a galope na direcção da cidade. Rumores de cascos, sob chicotes e bastões de centenas de polícias armados de escudos e viseiras nos capacetes.
Parecia uma invasão de bárbaros contra uma terra de anões assustados.
Àquela hora da manhã, estava tudo fechado na cidade. E quem não estivera a presenciar a briga das mulheres andava ensonado pelos cantos. As tabernas ainda não tinham aberto as suas portas, o que significava que ninguém estava preparado para enfrentar as forças da ordem.
Faltava a força do álcool. Sem ela, os gigantes não tinham a visão limpa sobre as hostes inimigas. Nem podiam rosnar de ódios com a língua apertada entre os dentes e saltar como macacos dos poleiros das árvores sobre as fardas de armaduras luzidias.
Tudo indicava que aquela era a resposta da polícia à destruição dos camiões. Mas o marido de Dora não parecia ser o único destinatário das cavalgaduras. Porque fora da cidade corriam rumores de que os gigantes estavam todos em revolta, sob a liderança de dois monstros praticamente invencíveis.
Encegueirados pelas névoas matinais, a massa da população só lentamente se foi dando conta da chegada da polícia de choque. A má nova ia correndo de boca em boca, através das gigantas que corriam a acordar os maridos. Só que estes preferiam virar-se para o outro lado na cama, sem dar importância ao que estava acontecendo. Era como se enxotassem uma mosca teimosa da face.
As mulheres refugiavam-se, então, por detrás das janelas, protegendo os filhos de colo sobre as ancas e gritando para os outros que não saíssem de casa.
A coluna da polícia deteve a marcha a pouco menos de um quilómetro da linha que estabelecia a divisão entre a cidade e o resto do mundo. Tratava-se de preparar o ataque final ao reduto inimigo.
Só que este, por enquanto, não dava sinais de si. Não havia gigantes que fossem de encontro à satisfação dos objectivos da polícia.
A cidade parecia um presépio àquela hora da manhã, com as casas adormecidas e fechadas sobre si mesmas, expostas aos primeiros raios do dia.
Apesar da calma que reinava, a verdade é que tudo se ia decidir dentro de pouco tempo, ali mesmo, quando os gigantes acordassem e vissem com os seus próprios olhos o que estava a passar-se.
Até porque os cavalos da polícia estavam sedentos de sangue. E os guardas, armados até aos dentes, não pareciam dispostos a sair dali sem fazerem justiça.
A sensação que dava é que o ataque se realizaria, mesmo que não aparecesse ninguém a dar o corpo ao manifesto. A polícia abriria caminho sobre as casas desconjuntadas, espatifando tudo em redor, nem que fosse apenas para destruir o que já estava destruído.
Foram a correr chamar Júlio, que andava aos pontapés nas coisas que cada vez mais impediam a sua circulação no interior da oficina.
Por seu turno, Noé dormia a bom dormir. E foi preciso que três gigantes o empurrassem da cama para o chão, a fim de o fazer abrir o primeiro olho.
Tentaram convencer os dois a juntarem-se para tentarem deter a polícia.
Noé estava mais renitente. Procurou empurrar as responsabilidades para Júlio.
Mas disseram-lhe que não ficaria pedra sobre pedra na cidade se eles deixassem avançar as forças da ordem.
Aquela parecia ser a vingança total sobre a própria condição de um povo escorraçado e maldito.
Ao fim de quase uma hora de conversações, Júlio e Noé apareceram lado a lado em frente à polícia. Não dirigiram palavra um ao outro. Não se olharam sequer. Mas ali estavam, como duas torres, prontos para o que fosse preciso. Por todas as razões e mais alguma, aquele era um dia sem igual.
Atrás dos dois mais poderosos símbolos da terra, via-se uma cidade inteira de gigantes, gigantas e gigantinhos, todos agarrados uns aos outros, como se à espera do Juízo Final.
Era mais seguro estar ali, recolhido à sombra dos dois gigantes máximos, do que estar escondido em casa, debaixo da cama, ou numa arrecadação bolorenta.
Ante o quadro de tantos gigantes agrupados na praça principal da cidade, surgidos de repente, não se sabe como nem de onde, a própria polícia teve dúvidas sobre o que se seguiria.
Mas é evidente que as dúvidas depressa se dissiparam.
Os gigantes gritavam para Júlio e Noé, que se encontravam à cabeça da manifestação, incentivando-os a derrubar vinte e trinta cavalos de uma vez!
Mas os dois gigantes estavam mais concentrados do que nunca e nada ouviam. Para eles, o importante era a concentração, única arma que lhes restava.
Hoje, porém, a uma distância razoável do acontecimento, pode afirmar-se com razoável certeza que o facto de as tabernas estarem fechadas foi determinante para o que sucedeu a seguir. O resultado nunca teria sido o mesmo em circunstâncias normais. Porque o álcool tinha um papel decisivo na afirmação dos gigantes. Privados dele, a cidade era outra.
Sem aviso prévio, ouviu-se um barulho de cascos enfurecidos sobre as pedras cortantes da calçada.
Não houve tempo para tentar saber o que estava acontecendo. Em menos de um segundo, os gigantes da linha da frente, Júlio e Noé incluídos, foram cobertos por uma nuvem de poeira que fazia lembrar um cogumelo atómico.
Foi um sinal de maldição. Porque se Júlio e Noé nem conseguiam proteger-se de uma explosão de poeira, como seriam capazes de resistir à força bruta de tantas cavalgaduras?
Sem nada nas mãos, Noé foi o primeiro a destacar-se da massa de gigantes, avançando de peito aberto contra os agressores.
A ousadia chamou a atenção de um guarda, que ergueu o bastão, fez o cavalo levantar as patas e dar-lhe um coice certeiro na fronte.
Noé ficou a ver estrelas. Ainda se manteve de pé durante uns segundos sem saber exactamente para onde cair, mas pouco depois, desabou como um castelo ainda antes de o primeiro pó ter assentado.
Depois da queda de Noé, nunca mais houve senso nas hostes defensivas.
Até porque Júlio, que se encontrava perturbado pelas confusões relacionadas com a aliança de Dora, foi rapidamente sobrevoado pela calvagadura seguinte. E só não ficou com os ossos todos partidos, porque era menos encorpado do que Noé, o que acabava por protegê-lo em vez de o desfavorecer.
Desaparecidos Júlio e Noé da frente de combate, a cidade ficou à mercê de quem estivesse preparado para a atacar.
A polícia não se fez rogada. Entrou pelas ruas com brilhos ferozes na ponta das armas, partindo vidraças, arrombando portas de casas e tabernas, destruindo bancos de jardim e postes de fios, atirando granadas de gás para os esconderijos mais insuspeitos.
Os gigantes pouco ou nenhuma reacção esboçavam. Do fundo dos seus currais, atiravam aqui e acolá, uma ou outra pedra na direcção dos olhos de um cavalo ou do traseiro de um polícia. Mas estavam longe de impedir a continuação das derrocadas às mãos dos agentes, que malhavam de tal forma em tudo o que lhes surgia pelas ventas, fosse gigante, carroçaria de automóvel, fontanário ou imagem de santo, ao ponto de deixarem a cidade num estado que fazia lembrar os primórdios da sua construção, com tantas paredes desventradas e vigas a descair por cima dos montes de pedregulhos no meio das ruas.
Os guardas acabaram por dar consigo sozinhos, de olhos revirados para a luz, sem vivalma contra quem combater. Todos os gigantes tinham descido ao túnel de um grande silêncio, como nos casos das aterradoras epidemias, ou dos acidentes nucleares, em que as populações são dizimadas por um ar de morte invisível.
E só depois de se ouvir a trepidação provocada pelo afastamento das bestas é que vieram aqueles gritos medonhos de vozes em ruínas, como acontece no minuto logo a seguir às grandes tragédias.
Mas desta vez parecia que a dor vinha de mais fundo, de dentro da terra, desde a pulsação do fogo, até à lembrança dos tempos em que tinham chegado à cidade camiões, vindos de todas as partes, com montes de gigantes lá dentro, ao fim de dias e noites de viagens sobre urinas, desmaios, comida seca e lamentações de ardumes. A diferença era que a história destes gigantes nunca havia sido contada, apesar de ser tão verdadeira como outras por esse mundo fora.
E assim se fez uma cidade de piolhosos e miseráveis. Recordação após recordação, esquecimento após esquecimento. Os malditos foram abandonados à sua sorte e aos escombros infestados de maus cheiros e sons ameaçadores.
Desaparecido o último cavalo no horizonte, havia fumo negro sobre as casas destelhadas, sinais de morte e de vida, de abismo e de construção. O barulho dos seus cascos fazia lembrar o dia em que os primeiros gigantes tinham chegado à cidade. Os primeiros de muitos outros que viriam a seguir. Em tentativas de tudo recomeçar. Depois de tudo o que se perdera, de tudo o que se desfizera.


XVI

Reconstruir a cidade assemelhava-se à expectativa de erguer um presépio, colocando casa sobre casa, musgo ao lado de musgo, ruela a seguir a ruela. E a cidade refazia-se em Dezembro, mês dos grandes desacatos e da carga policial como nunca antes se vira em parte alguma.
Os gigantes empenhavam-se na forma de tratar as mazelas das casas e as nódoas negras sobre os corpos que tinham sido vítimas dos golpes mais duros. Até a fita de gaze no queixo de um deles fazia lembrar a barbicha de um dos reis magos que seguia a estrela para Belém. Os postes de luz eram recolocados nos sítios e iluminavam as ruas com uma nostalgia tão apreciada como se fosse Natal.
Muita gente voltava a aglomerar-se junto à casa de Noé. Mesmo de cabeça enfaixada pelo coice medonho que levara na refrega com a polícia, o rival de Júlio atendia pedidos, agora, a qualquer momento do dia ou da noite, com vista à cedência de avultados empréstimos, sem os quais a cidade não renasceria das cinzas.
Passaram-se semanas e meses, com empurrões e escaramuças, zangas e atritos, nas bichas intermináveis, à espera de vez na casa onde se resolviam quase todos os empréstimos financeiros.
Até que um novo confronto entre Júlio e Noé entrou para a história. Noé achou que Júlio estava a querer roubar-lhe a clientela porque sempre ia fazendo uns arranjos fortuitos aqui e acolá, a pedido deste e daquele. Apesar das demoras e esquecimentos, Júlio acabava por ir dando uns jeitos, em troca de uns vapores e encharcos.
Noé considerou que os seus financiamentos estavam a ser prejudicados e foi ajustar contas com o rival. Como sempre, não chegou a haver conversa entre ambos. Mas sim uma espécie de terramoto que veio abalar as construções renovadas. A briga terminou com Noé de garganta apertada num cabo eléctrico e Júlio pendurado por uma orelha que por pouco não virou troféu nas mãos do inimigo.
Seguiu-se um período de curas e graças. A cidade estava mergulhada num universo de intimidades que vinha de dentro das casas estender-se para as ruas, como as penugens soltas dos pássaros boiando em aromas silvestres rente aos olfactos. A cidade parecia ainda uma floresta nova a despontar os galhos por entre as raízes conturbadas da anterior devastação. Os animais procuravam os antigos territórios, estendendo-se ao sol em roncos desmazelados. Mas o sossego não podia durar muito na cidade dos gigantes. Haveria sempre alguma coisa para afligir os corações.
Começavam a ouvir-se as primeiras vozes críticas em relação aos negócios de Noé. Contas velhas que há muito estariam saldadas e que na verdade não estavam. Os avisos de pagamento continuavam a chegar às caixas de correio dos gigantes, que julgavam aqueles negócios já liquidados.
Levantou-se um sururu pela cidade. Alguns gigantes foram bater à porta de Noé, que desde há vários dias não aparecia em casa. E quando o viam na taberna ele fingia que não conhecia as pessoas, dando-se ares de homem importante, que ficava acima dos rumores.
Agora, então, começava a perceber-se a forma como Noé enriquecera. Ao ponto de uma vez ter queimado uma nota de dez contos nas barbas de toda a gente que se encontrava na taberna.
O cerco apertava-se em torno de Noé. Mas ele negava tudo.
Havia quem ameaçasse fazer explodir a sua casa pelos ares. Só que o reles desatava a rir, espantando as críticas com baforadas de escárnio.
Mesmo assim, havia vozes que comentavam a alguma distância que ele tinha os dias contados e que alguém lhe faria nova espera, desta vez, sem remissão.
Falava-se que a viúva, finalmente embarcada com a filha para o estrangeiro, se oferecera para lhe depositar grandes quantias em bancos de terras distantes. O que explicava as gargalhadas com que Noé respondia às críticas que lhe faziam. Mas também se dizia que a mesma viúva não perderia tempo em passar esses valores para a sua conta pessoal. E que, por isso, a riqueza de Noé estava nas últimas.
Noé passeava-se com grande descaro e arrogância, pelas ruas da cidade. Sentava-se desde a manhã na taberna e só de lá saía quando era noite cerrada. Por causa das dúvidas nos negócios, os gigantes tinham deixado de lhe fazer bicha à porta.
Mais espertalhão do que nunca, Noé tinha todo o tempo disponível para se embebedar. E, apesar de tudo, o tempo não lhe era totalmente desfavorável.
Por isso, ele não deixou escapar a oportunidade para resolver o assunto da carta da mãe que estava para chegar e que nunca mais chegava.
Noé sentou-se à mesa dos seus enegrecidos papéis. Debruçou-se sobre uma folha mais limpa, encontrou a sua melhor caneta e fez uma mistura de tinta com vários tons, a fim de que ela parecesse de origem divina. O importante era que a carta provocasse uma impressão excepcional junto de quem a lesse.
Convencido de que se preparava para começar uma obra inolvidável, Noé iniciou a escrita com o maior cuidado, não fosse a mão escorregar para os termos errados. Pôs-se a rabiscar os contornos das letras sobre a brancura do papel. Quem visse a sua mão poderosíssima agarrada à delicadeza da pena não teria dúvidas sobre a origem divina daquela carta.
Enquanto escrevia, notava-se uma baba de fio que se desprendia do lábio inferior de Noé. Este era um pormenor à primeira vista sem alcance, porém em tudo idêntico à imagem do Criador que algumas estampas ainda se encarregavam de preservar.
Depois, a saliva espessa tombava sobre a folha, como um sinal de letra esforçada, e o gigante rasgava o papel, para começar de novo outra página.
De tanto se babar, teve que escrever muitas folhas em busca da perfeição.
Para ser o homem mais forte da cidade, tinha que conseguir terminar a carta sem uma nódoa.


XVII

Dora ganhara o hábito de ficar na cama todo o dia. Queixava-se de reumatismo no pescoço, de pontadas na zona direita do ventre, de descidas de tensão, de picadas nos pés.
Por isso, a casa de Júlio passou a ser frequentemente visitada por gigantas curiosas que vinham inteirar-se do estado de saúde de Dora.
Mas ninguém compreendia as suas queixas estranhas porque, nos últimos tempos, Dora andava com um excelente aspecto.
Em contradição com a sua aparência, no entanto, e às horas menos previsíveis, às três da madrugada, ou às cindo da tarde, Dora punha-se a berrar durante tempos sem fim.
Em seu redor, ficavam os filhos e por vezes o marido, com expressões de quem esperava vê-la agonizar de um momento para o outro.
Ninguém se atrevia a ir à cidade mais próxima chamar um médico. Até porque os gigantes votavam ao maior desprezo – um desprezo irreversível e total – os avanços da ciência e da medicina.
Assim, Dora piorava a olhos vistos, com a balbúrdia das gigantas que a vinham ver e que pouco ou nenhum ar deixavam dentro do quarto. O que elas faziam era rezar, com vozes tremelicantes de súplica.
Certo dia, contudo, alguém sugeriu que se chamasse um gigante dotado de poderosos meios de cura para insondáveis males do género.
Ao ouvir a ideia, Dora refreou as queixas, reduzindo-as a uma série de gemidos monocórdicos. Não se sabia se aquela súbita mudança significava acordo ou desacordo com a sugestão.
Pelo sim, pelo não, veio o gigante curandeiro ver o que se passava com a mulher de Júlio.
E logo que ele deu entrada no quarto, Dora aumentou o ritmo das lamúrias.
Ele abeirou-se dela, procurando o melhor ângulo de visão. A seguir, fez sinal para que se fechasse a janela e saíssem todos do quarto, desde o filho mais pequeno ao próprio Júlio, excepto ele. O recolhimento absoluto parecia ser condição fundamental para o sucesso da operação.
Trancada a porta, ficaram os gigantes aglomerados do lado de fora, a ouvir os gemidos de Dora no lado de dentro.
A espera prolongou-se sem notícias de melhoras. Mas a voz da doente continuava a chegar aos ouvidos dos gigantes, só que agora exprimindo uma espécie de dor mais fina em soluços progressivamente acelerados. Como se o curandeiro se tivesse posto a untar de mel insondáveis raspões na carne atormentada de Dora.
Júlio estava fora de si e não queria esperar nem mais um minuto. Ameaçava meter a porta dentro. Insistia em saber o que estavam a fazer à mulher, mas ninguém lhe adiantava nada.
As outras gigantas procuravam acalmá-lo, dizendo que era mesmo assim, que ele tinha que ter paciência, que Dora ia melhorar. Havia doenças difíceis de detectar, por isso era preciso ser paciente. Aconselharam-no a ir dar um passeio. Quando a consulta terminasse, chamá-lo-iam, para que ele viesse então reclinar-se à beira da cama, onde havia de encontrar Dora completamente recuperada.
Júlio seguiu os conselhos das gigantas mais experientes. E afastou-se, cabisbaixo, enquanto ia coçando a orelha envolta em adesivos e algodões desde a última briga com Noé.
Logo a seguir, as gigantas colaram prontamente os ouvidos à porta do quarto de Dora, para ouvirem melhor o que se passava. Queriam consolar os ouvidos naquilo que elas imaginavam ser as tumultuosas labaredas que o curandeiro haviam acendido sobre a cama da doente.
Era tal a euforia de ouvir ou ver alguma coisa no quarto que outras gigantas ameaçavam ficar doentes também se não as deixassem aproximar da porta!
O casebre de Júlio estremecia de barulhos, gemidos, empurrões, apertos, curiosidades. E a certa altura já não se percebia se o que se ouvia era o barulho dos lençóis revoltos e da cama a ranger no quarto de Dora ou se era o ruído inquieto das saias e xailes a que as gigantas nervosas se agarravam no auge da excitação. Todas queriam ouvir, ao mesmo tempo, as santas bênçãos da cura.
Assim, não se entendia bem o que podia estar, realmente, a acontecer. Entre risadas e galhofas das mais atiradiças, empurrões de trás, para a frente e para os lados. Cada uma procurava escutar os pormenores de soluços e gritos misturados com gargalhadas atrevidas, lá dentro, ou cá fora.
Não havendo maneira de conter as curiosidades, que eram cada vez maiores, e para que a casa de Júlio não desabasse a qualquer momento, ficou combinado organizar-se uma bicha de gigantas. A fim de que todas pudessem encostar o ouvido à porta e assim descodificar os sinais que lhes chegassem.
Todavia, nem deste modo se conseguiu impor a ordem. As mulheres não cabiam em si de excessos. As que estavam atrás metiam os dedos nas nádegas das da frente e estas não acertavam no buraco da fechadura nem nas frinchas da porta. O que elas queriam eram estar coladas interminavelmente à porta que as separava da verdade. Mas eram pressionadas pelas outras, que reclamavam por nunca mais chegar a sua vez. Havia uma que se queixava de ardume nos olhos e uma outra que garantia ter dores de ouvidos. Só para que as deixassem ver. As que saíam da bicha, por já terem espreitado, voltavam para a cauda da mesma, na esperança de terem nova oportunidade.
A verdade é que já ninguém se interessava pelo sofrimento de Dora. Já ninguém queria saber se ela corria riscos de vida. Ou se estava de perfeita saúde.
No futuro, de resto, Dora teimaria em cair de cama muitas outras vezes, sempre com os mesmos males, com a mesma doença, cujos desígnios se mantinham desconhecidos. E era sempre visitada pelo gigante curandeiro.
Todas as vezes que aparecia em casa de Júlio, o curandeiro desfazia-se em amabilidades e vénias, assegurando que acabaria por descobrir o mal que apoquentava Dora. Ou levantando a hipótese de os sintomas, daquela vez, serem ligeiramente diferentes dos anteriores. Aquando da última crise, Dora não tivera febre nem enxaquecas. Só picadas nas costas e nos rins. E antes não tivera picadas nas costas, mas sim dores na garganta e nos tornozelos.
Sempre que o curandeiro ia a casa de Dora, as gigantas expulsavam Júlio, para terem liberdade de movimentos na espionagem a que se dedicavam através das frinchas da porta. Mais tarde, depois de terminada a longa consulta, mandavam-no chamar para que ele se entendesse com o gigante que estivera a dar assistência à mulher.
Júlio sentava-se, então, ao lado de Dora, já restabelecida, já de fronte desanuviada, que se punha a explicar-lhe mais aquele milagre do sábio curandeiro.
A giganta garantia que só de olhá-la, ele a pusera boa. O milagreiro aparecera no crucial momento em que Dora estava prestes a alagar-se nas águas da morte. Ela já sentia as ondas fúnebres a bater-lhe nas rochas dos tornozelos, como se quisessem arrastá-la na maré cheia, mas de repente surgira o curandeiro, santo homem, que a libertara das garras da morte.
O poder descritivo da mulher arrepiava a coluna de qualquer gigante. Júlio tinha dificuldades em acreditar nas suas palavras. Mas sempre que ouvia falar em milagres ficava arrepiado e deprimido.


XVIII

Sem perder tempo com a leitura da carta, Noé foi a correr para a taberna mostrar aos gigantes a boa nova que lhe chegara do Céu.
A carta dizia, sem hesitações, nem confusões, que ele era o homem mais forte da cidade!
Além disso, o mesmo papel fazia referência à sua honestidade. Afirmava que se tratava de uma pessoa merecedora do maior respeito e dos maiores elogios. Este acrescento oportuno visava branquear a sua imagem, que ficara irremediavelmente prejudicada desde que se soubera das suas contas trapaceiras com muitos gigantes.
Mas Noé já tinha resolvido o problema, deixando-o cansar nas bocas dos gigantes. Ao fim de uns tempos, a necessidade de novas notícias fizera passar o assunto ao esquecimento. Tanto que a carta só viera tocar desnecessariamente numa questão melindrosa.
Também convinha aos gigantes lesados por Noé que o assunto não voltasse a ser notícia de primeira página. Para que, mais dia menos dia, o caso pudesse ser solucionado à sua maneira, sem atrair demasiado as atenções.
Bem atarracados de álcool, umas dezenas de gigantes haviam de desfazer, peça por peça, a casa do aldrabão. Fá-lo-iam, contudo, numa altura em que o gigante se encontrasse fora. Porque nunca se sabia até onde podia chegar a sua força. A avaliar pelas brigas entre os dois homens mais fortes da cidade, cada um deles valia em músculos cerca de vinte gigantes de estatura média.
Entretanto, Noé tinha chegado à taberna para mostrar a carta, mas ao contrário do que habitualmente acontecia, ninguém lá se encontrava.
O taberneiro era a única alma presente. Entretinha-se a bufar e ressonar, simultaneamente, com a fronte caída sobre as mãos em cima do balcão. Dormia como um caracol.
Os jogos estavam espalhados em cima das mesas e a imobilidade das suas peças não era lá grande presságio.
O gigante deu um murro mesmo ao pé do ouvido do taberneiro adormecido e fê-lo acordar com os olhos em volta, à procura de uma boca de canhão.
Ao ver a exaltação de Noé, com as pupilas em bico, enfiou a cabeça dentro de um armário enquanto gritava que não sabia de nada, que não estava metido no caso, que nada tinha a ver com o assunto, que Noé tivesse piedade da sua alma.
Noé não percebeu exactamente onde queria ele chegar. Por ser lento de ideias, pegou no taberneiro pelo cachaço e encostou-o à parede, a fim de que ele pudesse ler com toda a concentração a carta supostamente divina que tinha chegado à sua caixa de correio.
O impacto da novidade foi tal que o taberneiro se desmoronou, estatelando-se ao comprido no chão. Só nessa altura se verificou que a carta estava de pernas para o ar. Mas o taberneiro desmaiou ainda antes de ter tempo de a ler. Apagou-se com a imagem de uma folha branca a esvoaçar diante dos olhos. Como uma pomba atravessada de bala.
A atenção de Noé, contudo, depressa foi chamada para outras paragens. Da zona de sua casa vinha uma balbúrdia gigantesca. Como se alguém estivesse a virá-la do avesso.
Noé desatou a correr em direcção ao que ouvia, fazendo-se anunciar com a estrepitosa cavalgada dos seus passos.
Ao atingir a meta, não encontrou os autores da tramóia. Só a casa despejada de móveis e papéis de contas. Tinham-lhe levado tudo. Até o penico e o candeeiro que herdara da mãe. Nem um recibo ficara para mostra.
A partir desse dia, restava-lhe a dureza do quarto para dormir. No chão. O grosso do seu dinheiro tinha sido entregue à viúva, que partira para o estrangeiro e que certamente o teria depositado numa conta em seu nome. Esta ingenuidade de Noé deixou-o quase tão desamparado como no dia em que foi mandado nu para casa.
Noé sentiu-se invadido por uma ressonância de vazios ancestrais e disformes, onde tudo deixava de ser proporcional.
Com a cabeça apoiada na inseparável caixa de cervejas, enterrou-se na memória longínqua das tardes.
Em outros tempos, ele e a mãe passavam juntos todas as horas do dia, debruçados na janela lado a lado, como marido e mulher. Teciam comentários aos que desciam e subiam a rua, casais monótonos sem nada para dizerem um ao outro, pais com os filhos pela mão, velhos trôpegos à espera de morrer, apreciadores de montras, invejosos, curiosos, de tudo isto um pouco se fazia a vida.
Mas quem passava pela rua também não conseguia esconder sorrisos amarelos ante a pasmaceira e aparente felicidade que Noé e a mãe gozavam na sua pose de janela. Não lhes dessem mais nada. Só aquelas horas, todos os dias, mãe e filho, lado a lado, vendo o mundo deslizar diante dos olhos.
A maravilha desse tempo foi interrompida no dia em que apareceu uma safada com intenções explícitas de se unir matrimonialmente a Noé. Ao passar na rua, parava e punha-se de conversa com o gigante e a mãe, dizendo claramente que gostava muito dele, que só pensava nele, que só o queria a ele, que haviam de unir as suas vidas para o bem de todos.
Atarantado, Noé nem sabia que responder. Sentia-se muito bem ao lado da mãe, por isso não tinha necessidade de outra. E estranhava que pudesse haver alguém a fazer concorrência à própria mãe.
Mas a giganta tanto insistiu que foi mesmo a mãe de Noé que o incentivou a começar o namoro. Ela não viveria sempre e aquela era uma maneira de ele não ficar desamparado, um dia, que ela morresse.
Apesar de ter sido um namoro conturbado, a data do casamento não sofreu alteração.
Mas a união não se manteve por muito tempo. Porque no próprio dia do enlace, Noé abandonou a esposa, com o pretexto de uns cortinados que ela queria lá em casa e ele não.
Fugiu da cama da legítima esposa e foi aninhar-se nos lençóis quentes da mãe, onde se manteve obediente e fiel até ao último respiro dela. Foi uma união tão duradoura e sólida que, anos mais tarde, o gigante não resistiu à separação que a morte estabeleceu entre ambos. Arrombou a porta do cemitério, abriu uma cova ao lado daquela onde jazia o amor da sua vida e deixou-se cair dentro dela, pedindo alto e bom som que não o tirassem dali.
Data dessa altura a expulsão de Noé para a cidade em que milhares de gigantes fermentavam num abandono de ódio sem limites. Fora esse o verdadeiro motivo da sua deportação e não aquele que contara aos amigos. Até ser expulso para a cidade dos monstros, nunca tinha ouvido falar em Júlio.
Noé tornara-se, então, após muitas peripécias de lutas e bebedeiras, aquela montanha de carne estendida na noite. Todo ele parecia um túmulo desprovido de conforto ou de qualquer lápide que esmiuçasse o filho da mãe que ele era.
Dava a ideia de estar ali a mais. Não havia presente do indicativo nos seus olhos. A seu lado, faltava a memória de outro corpo. Tinha sido despojado de tudo. Ao ponto de quase ser preciso apenas retirá-lo das tábuas em que dormia, como nas de um caixão, para libertar a casa daquele excremento que tornava o ar escasso.
Quando tudo indicava que agora Noé estava mais seguro do que nunca, depois de ter sido espoliado de todos os bens que tinha em casa, aconteceu-lhe o pior. Dois homens, de estatura média, vestidos de gabardina e chapéu, entraram na sua residência por uma das janelas das traseiras e anularam-no rapidamente através de uma anestesia que lhe injectaram no braço. Noé ainda olhou para trás a ver o que se passava quando ouviu um ranger de soalho, mas já não foi a tempo de se safar. Tentou afastar a agulha, em vão. Em menos de um segundo, tinha os pés presos e era arrastado ao longo da escuridão para fora da cidade.
Noé estava entregue ao vazio, ao desconhecido, à ignorância. O seu corpo descomandado não tinha destino. As forças dormiam-lhe, enquanto a sua sobrevivência navegava ao sabor das ondas.


XIX

As doenças de Dora tornaram-se rotineiras. Desistiu das lavagens à casa. A sua residência piorou de aspecto.
Os filhos estavam cada vez maiores, o que fazia com que houvesse cada vez menos espaço disponível dentro da habitação.
Júlio passava agora mais tempo na oficina. Tinha maior número de encomendas do que o habitual. E sempre era preciso ir fazendo pela vida. Acontecia-lhe, por vezes, estar a consertar uma peça qualquer e ter de repente uma ideia para um projecto novo. Então, dava outro destino à peça e ficava resolvido o assunto.
Certo dia, porém, não houve imaginação capaz de solucionar o problema que se lhe deparou.
Estava ele a soldar uma velha trempe, quando lhe pareceu ouvir ganidos por detrás de um monte de bugigangas.
Suspendeu a tarefa que tinha em mãos e foi ver o que estava a acontecer.
Deu de caras com três rostos de bebé a olhá-lo de dentro de um armário embolorecido.
Perplexo, Júlio aproximou-se para observar melhor. Mas parou atónito. Os bebés desataram a fugir e foram esconder-se debaixo de uma mesa. Os seus corpos não eram humanos. Andavam sobre quatro patas e sacudiam a cauda como os cães.
A mãe dos três bichos, a cadela de Júlio, estava ali mais ao lado, estendida sobre o chão, com os olhos colados à sombra das pálpebras.
O gigante debruçou-se sobre o animal, para verificar o estado em que se encontrava. Assistiu ao seu último suspiro. E afastou-se por não suportar a dor.
Os três cães com cabeças humanas vieram abrigar-se aos pés do gigante, lambendo-lhe as botas, como se à procura de teta.
Mas à semelhança do que fazia à mãe quando ela vinha consolá-lo sobre o degrau de pedra, ele sacudiu os cachorros para longe da vista. Não os tolerava. Muito menos ali à volta, assim despudoradamente.
Júlio sentiu um estrondo no peito logo que viu os três cachorros com rostos humanos. E o estrondo não passou. Manteve-se ao mesmo nível do impacto inicial. Depois, viu morrer a cadela. E a dimensão do desgosto aumentou.
Pôs-se a andar às voltas, a ver se conseguia respirar melhor. Encostou-se a uma parede. De frente e de costas. Em vão. Sentia o coração prestes a rebentar. O coração do homem mais forte da cidade.
Nunca tinha vivido um momento tão aflitivo. O seu maior adversário poderia estar à beira de realizar o maior sonho da sua vida. O único sonho. Podia não morrer, agora, naquele instante exacto, mas a verdade é que Júlio dificilmente recuperaria de um golpe daqueles.
É que, ao olhar para os três cachorros, tivera a nítida sensação de se estar a ver a si mesmo ao espelho. Um espelho que triplicava a imagem. O que não admirava, tendo em conta a quantidade de álcool que ingerira naquele dia.
O pior era a semelhança física entre ele e os cachorros. Quando pensava nisso, o estrondo que sentia no peito aumentava de intensidade. Aumentava sempre. A um ponto em que o coração quase lhe saltava do sítio.
Não havia muitas soluções para aquele imbróglio. Júlio não podia perder tempo com análises de fundo ao acontecimento.
Por isso, antes que alguém soubesse do fenómeno, o gigante foi buscar um saco, onde meteu a cadela e os três cachorros. Só que eles se escapavam, facilmente, por entre as suas mãos, pondo-se a correr nos labirintos das quinquilharias. Contornavam o cerco urdido pelo gigante e apareciam atrás dele com notável agilidade, surpreendendo-o a todo o momento.
No meio da confusão que se gerou, tombaram vidros e relógios de corda a buzinar, peças de carros e sirenes alarmantes, badalos de sinos e campainhas eléctricas, apitos, despertadores de orelhas, frigoríficos, panelas.
Para ver melhor onde se tinham escondido os cachorros, Júlio acendeu lâmpadas, deitou-se no chão, rebolou sobre lama e objectos partidos na tentativa de os prender.
Foi um penar para os meter junto ao cadáver da mãe dentro do saco. Mas ao fim de quase uma hora, o gigante dominou os três demónios em pessoa, atordoou-os com umas pancadas na cabeça e pô-los dentro do saco, às costas, para ir dar um passeio até às matas vizinhas que circundavam a cidade.
Abriu uma cova e enterrou tudo. A função da morte era isso mesmo. Sufocar os seres vivos sob a terra húmida.
Porém, até realizar os seus desígnios, até chegar às matas que cresciam à volta da cidade, onde havia de enterrar a cadela e os três filhos com rostos de gente, Júlio teria ainda que percorrer as ruas por entre as casas, com o saco às costas, e passar diante dos olhos das mulheres que espreitavam por detrás das janelas, especulando intimamente sobre o que o gigante levava no saco.
Os homens encostados às paredes das tabernas haviam de mirá-lo, interrogativos, ao vê-lo passar. E congeminariam ideias sobre o rumo que levaria Júlio naquela tarde, pois ele passava diante das tabernas e não se detinha para beber. Parecia que levava ouro no saco.
Em qualquer caso, sobre o que levava no saco, ou não, a verdade é que levava o peso de todas as suas brigas com Noé, levava as marcas de fivela estampadas no corpo de Dora, levava suspeitas de doenças estranhas por parte da mulher, levava as noites de sonhos calorosos em que se rebolava pelo quarto sobre os gigantinhos para se quedar no cais de uma filha mais sedenta que costumava esperá-lo acordada até altas horas da madrugada, levava a oficina de tanta velharia enferrujada, levava o ódio ao mundo e a si mesmo..
Mas é claro que tudo isto só procurava encobrir dos olhares a maior vergonha de Júlio, que era a sua responsabilidade pela vida de três malditos cachorros com cara de gente.
E se julgam que o gigante levava só isso com ele para enterrar nas matas que rodeavam a cidade estão muito longe da verdade.
Ele levava isso e muito mais. Levava anos e anos de bebida com aguardentes, levava as íntimas recusas de Dora na cama, levava toda a ignorância sobre o seu passado, levava a carta em que estava escrito ser Noé o mais forte da cidade (e este peso não era dos menores), levava humilhações desde o tempo em que nascera com o defeito de ser como era, levava planos de vingança nas tácticas de lutas que se deram e dariam no futuro, levava cheiros de borracha queimada com brilhos de cargas policiais diante das ventas. E levava ainda a imundice da casa, e as gretas por onde entrava o mau tempo, por isso o monstro muitas vezes tinha de dormir sob plásticos, ou guarda-chuvas abertos, que o resguardassem a ele e aos filhos, das grossas bátegas que caíam durante noites consecutivas. Júlio levava muita coisa, levava os vinte militares de metralhadoras apontadas à sua cabeça no carro blindado em que fora conduzido para aquela cidade de fezes. Separaram-no da família (que ele demorou anos a reencontrar) e escorraçaram-no para o fim do mundo. Júlio levava dívidas e dúvidas, levava o passado e o futuro, levava a sua história, levava isso e mais. Já que tanto queriam saber, aí tinham.
Uma vez aberta a cova, Júlio atirou o saco para as profundezas, sentindo como se parte dele fosse a enterrar naquele momento.
Desatou a tapar a cova com a maior rapidez, mas após cada pazada, os cães respondiam pondo de fora as cabeças humanas. Desatinado, Júlio praguejava, exigia obediência. Depois, atirava pedras aos cachorros, que ganiam e ladravam, esquivando-se aos ataques. Quanto mais terra o gigante lhes atirava para cima, mais saltos e gemidos eles davam, mais se contorciam e opunham ao sufoco.
Mas Júlio acabou por vencer a luta. E impôs o silêncio sobre a cova disfarçada por umas ervas rasteiras que passaram a cobrir a maldição do seu acto.
Terminado o enterro, preparava-se o monstro para regressar ao alívio da cidade, quando se ouviu, de novo, o latir dos cães, que tinham conseguido libertar as cabeças acima do nível da sepultura.
Vistas as faces dos animais naquela euforia de berros esganiçados, o crime de Júlio parecia maior. Os três cachorros cabeceavam como abjectos mosquitos desnorteados dentro do Verão.
O gigante decidiu acabar com o problema de uma vez por todas. Voltou ao local onde os três bichos ganiam de aflição e espezinhou os seus pequenos crânios com as botas que trazia calçadas. A seguir, completou o trabalho, martelando-lhes as cabeças com a quina da pá. Para esconder o crime, agarrou meia-dúzia de pedregulhos e deixou-os cair sobre os cadáveres de cérebros esmagados.


XX

Depois do assalto a casa de Noé, passou a saber-se exactamente como ele procedera para enganar os gigantes que recorriam ao seu auxílio financeiro.
Se alguém precisava de cinquenta contos, ele fazia uma letra de quinhentos e embolsava a diferença. O pagamento da totalidade da quantia ficava a cargo de quem pedia. Se alguém queria duzentos contos, ele assentava dois mil. Uma questão de acrescentar um zero à série de números. E assim por diante.
Até que um dia, começaram a circular os primeiros rumores acerca da falcatrua. De janela em janela, de porta em porta, de esquina em esquina, nas tabernas.
Havia quem não acreditasse, quem dissesse que tal era impossível, que Noé nunca se atreveria a tanto. E havia quem pusesse as mãos no fogo sobre a veracidade da história. Para que não restassem dúvidas, um grupo de gigantes decidira assaltar a casa de Noé. E tirara tudo a limpo.
A seguir, Noé levara um sumiço, depois de o terem anestesiado à falsa fé. Mas, independentemente do que tivesse acontecido, sabia-se que um gigante da sua envergadura não demoraria muito tempo a regressar à cidade.
Falar em alguém é torná-lo, de alguma forma, real. Como se as letras que compõem o nome da pessoa constituíssem um isco que a atraísse inapelavelmente.
Foi o que aconteceu. Estávamos a falar em Noé e ele apareceu no horizonte, quando Júlio vinha precisamente a meio caminho entre a cidade e a mata onde enterrara os cães.
Noé surgiu em grandes passadas, relinchando como uma besta espavorida de garras afiadas em direcção ao rival do seu ódio supremo.
A impetuosidade que trazia era tal que bateu de cegueira contra uma árvore mais alta.
Contudo, não perdeu o tino. Depressa se recompôs. Abraçou-se à árvore, apertou a língua entre os dentes, puxou o tronco para si, arrancou a massa de terra que veio colada às raízes e elevou no ar a sua lança desafiadora e temível.
Logo a seguir, correu para Júlio (como se o principal adversário fora a causa das desgraças que lhe vinham sucedendo) e lançou o tronco na sua direcção com toda a força de que era capaz.
Júlio pensava ainda nos cachorros esmagados sob as pedras. Mas nem por isso foi apanhado de surpresa.
Quando o tronco desferido por Noé vinha rasgando os ares, já ele estudava o melhor ângulo a partir do qual travaria sem perigo a arma de ataque desferida pelo adversário.
Aquela seria a maior luta de sempre entre os dois gigantes. A sua prova de músculos atingiria o limiar do descritível e adquiriria proporções capazes de assustar a própria Natureza.
Os insultos entre os dois eram tais que até as nuvens se deixavam afastar pelo sopro das suas bocarras salivosas.
Ninguém queria ver o que se passaria a seguir. Havia quem garantisse que os troncos se fendiam só de os gigantes lhes tocarem nas cascas. Podia imaginar-se, então, o que estava para vir.
Enquanto Júlio observava a aproximação do tronco lançado por Noé como um cabo de vassoura de tamanho nunca visto e que levava o seu peito por alvo, teve tempo de pensar e reagir da maneira mais eficaz. Segurou a árvore voadora pelas raízes, como em outras ocasiões fizera ao cabelo de Dora, amortecendo o poder do embate, rodopiou sobre si mesmo e devolveu o objecto agressor ao antagonista. Logo a seguir, aproveitou para seguir manhosamente o trajecto da árvore, procurando apanhar Noé distraído a olhar para o tronco, enquanto ele, Júlio, avançava como uma flecha rumo ao adversário na tentativa de o atingir antes que o tronco lá chegasse.
Quando Júlio chegou junto de Noé, este ainda congeminava raciocínios sobre o provável destino da árvore...
Por isso, foi apanhado de chofre por uma cabeçada que Júlio lhe deu no estômago.
O choque derrubou os dois gigantes. Um para trás, o outro para diante. Júlio e Noé agarraram-se e espremeram-se com todas as suas forças, esmurraram-se, pontapearam-se, venceram quilómetros de mata. Sempre no meio de urros escabrosos que prometiam vingança sobre as razões com que mutuamente se acusavam desde tempos remotos.
Tanto rolaram e se espancaram que foram bater, por entre uma aparatosa confusão de membros feridos e arranhados, contra as casas que ficavam no último reduto da cidade.
A destruição de alguns muros provocou celeuma e fez com que perto de vinte gigantas tivessem vindo barafustar para a rua.
Era difícil dizer se as gigantas faziam tamanho berreiro por condenarem o regresso de Noé, por temerem o desfecho de mais aquela luta entre os dois maiores colossos da cidade, ou apenas por deplorarem o estado em que haviam ficado as suas casas.
Pelo sim, pelo não, os gigantes Inverteram a marcha da briga e foram parar de novo ao matagal, onde não faltavam árvores para arrancar e atirar contra o inimigo.
Depois de terem recorrido a todos os truques para tentar derrubar-se, decidiram os dois ao mesmo tempo atirar mãos cheias de terra aos olhos um do outro.
Isto fez com que se separassem imediatamente, encegueirados, indo cada um para seu lado ver o que podia fazer para se salvar. Mas nem assim a briga acabou.
Porque os gigantes puseram-se a rastejar às apalpadelas, sem verem nada, ora próximos, ora distantes, de costas um para o outro, de frente.
Até que Júlio detectou o monte de pedras sob o qual enterrara os cães com cabeças de gente e o inimigo teve a sorte de encontrar uma parede esborralhada.
Daí, começou uma chuva de arremessos contra a zona onde cada gigante imaginava estar o outro.
Foi uma luta de previsão e cálculo auditivo. Mas quase todas as pedras passavam ao lado do alvo porque os gigantes não estavam habituados a enfrentar-se naquelas circunstâncias.
As pedras espalhavam-se em inúmeras direcções. E em vez de os arremessos se irem aperfeiçoando à medida que aumentavam de número, pelo contrário, perdiam-se cada vez mais facilmente, devido à distância, à falta de jeito e à cegueira de cada um dos gigantes.
Mas também não estava posta de parte a hipótese de duas pedras colidirem no ar, indo o ricochete de cada uma delas ferir o gigante que originalmente a atirara.
Como se acompanhando o pensamento deste livro, Júlio abraçou uma pedra maior, ainda com restos de cão colados às rugosidades, enquanto Noé pegou na mais pesada que encontrou à mão.
Ambos nada viam em redor, devido à cegueira provocada pelo pó que se lhes havia acumulado nas retinas. Separava-os uma reles dúzia de metros. Mas tinham uma total falta de noção das distâncias.
Lançaram os pedregulhos ao mesmo tempo, um contra o outro, e deu-se o choque no ar, como uma colisão de mísseis.
Cada projéctil voltou à sua origem, indo embater nas cabeças subitamente estonteadas dos gigantes. A cabeça de Júlio desabou sobre a terra revolta onde os cachorros tinham sido enterrados e a de Noé ficou reclinada num ramo, docemente, como num braço de mãe, tal a violência da pancada.


XXI

Em consequência da briga que Júlio e Noé travaram na mata, viam-se espalhados por toda a parte bocados tenros de pele, ossos minúsculos, cachos de pêlos, líquidos de olhos. Os dois inimigos tinham abandonado o lugar algumas horas após o diabólico confronto, sem se preocuparem com as pistas que deixavam.
Assim, era difícil saber quem fora ali enterrado. Se pessoas ou cães. Porque a luta entre Júlio e Noé se encarregara de semear a confusão a toda a volta.
A imagem que ficava era a de um sacrifício, metade humano, metade canino.
Só podia saber o que acontecera quem tivera a sorte de presenciar o duelo espantoso.
Mas o essencial, agora, era a linha de pútrido cheiro, fino aroma de morte, que envolvia a cidade como um arco-íris de matéria decomposta. Porque os elementos encontrados não se coadunavam com o relato dos olhos. Para saber toda a verdade, era preciso analisar os odores. Ainda que estes fossem mesquinhos e insignificantes quando comparados com a podridão nauseante que alastrava por entre o casario na cidade.
De qualquer modo, ao último confronto dos gigantes ficou sempre associada uma nuvem de lendas, que nem os tempos vindouros haviam de esclarecer. Era importante manter as narrativas originais, com as suas páginas de mistério, a fim de que o sofrimento não se diluísse nas interpretações científicas ao passado. Além de que era importante que a verdade tivesse os seus direitos.
De uma forma ou de outra, a vida dos gigantes valia pouco mais do que a dos cachorros. Ignorados nos confins do mundo, ninguém se interessaria por repor a verdade dos factos. O que, só por si, justificava a sobrevivência da lenda.
Já recuperado da pedrada na testa, Noé chegou à porta da taberna. Era a primeira vez que regressava à cidade depois de ter sido raptado. Mas estava com dificuldades em entrar na passagem estreita. Até parecia que os outros monstros lá dentro o repeliam com olhares venenosos.
Porém, a curiosidade sobre as notícias que traria o gigante também exercia a sua influência.
Noé baloiçava na porta, esforçando-se por entrar, ou sair, conforme o desejo expresso nos olhares que o fustigavam.
O mais certo era deixarem-no entrar e beber, apesar das restrições que a minúscula entrada punha à sua corpulência.
De qualquer maneira, o vigarista já se encontraria de algum modo aliviado por ter ajustado contas com Júlio. Segundo o próprio dizia, fora o seu maior rival quem denunciara as suas burlas.
Por isso, agora, os outros gigantes podiam estar descansados porque não lhes seriam atribuídas culpas. Apesar dos suores frios que corriam nas suas faces oleosas.
Entretanto, Noé não era homem para se deixar enredar em subtis hermenêuticas de textos ocultos nas almas. Por isso, entrou na taberna, conforme estava previsto, após alguns contorcionismos mirabolantes na porta. E só travou o impulso quando bateu com o nariz no rebordo do copo de cerveja que já lhe tinham colocado em cima do balcão.
O taberneiro estava disposto a dar tudo para que Noé não estabelecesse relação entre a sua taberna e o assalto que lhe haviam feito a casa.
Apesar das fraudes de Noé, muitos dos presentes não escondiam a admiração que tinham por ele. Até porque há sempre um espaço de solidariedade que se cria entre quem rouba e quem é roubado. Havia gigantes, contudo, que lhe reservavam um ódio sem limites.
Quem se encontrava na taberna naquele momento não estava ao corrente das condições em que se dera o regresso de Noé à cidade.
O monstro podia vir apenas beber, podia vir na disposição de ameaçar alguém, podia vir tagarelar sobre o muito que fizera, e faria, ou podia tão só vir derramar a raiva habitual contra o primeiro que se metesse com ele.
O mais certo era aproveitar para agitar o ar pesado com golpes devastadores sobre a generalidade dos monstros, vingando-se de todos por aquilo que uns poucos lhe haviam feito.
E como se viesse mesmo a propósito, Noé desatou a contar, num tom de voz arrastado, tudo o que lhe tinha acontecido desde que fora dominado pela anestesia dos dois forasteiros.
Havia acordado no interior de uma névoa com sombras movediças. Estava na cela de uma prisão. Sentia as carnes espremidas contra os limites do espaço onde praticamente não cabia. Deitado sobre o comprido, a sua barriga, ao encher-se de ar, tocava no tecto, e assim enxotava as moscas, que voltavam aos seus poisos, quando ele diminuía o ventre.
De acordo com o seu relato, tivera grande dificuldade em virar-se, tal como acontecera na porta da taberna ao entrar, a fim de subir à janela e espreitar através das grades para o exterior.
Quando o conseguiu, viu as pessoas, do tamanho de formigas, andarem em baixo nas ruas. Imagine-se o nível de segurança onde o tinham encerrado.
Só que nem assim Noé desanimou. Porque não lhe faltavam tácticas na cabeça para o ajudar a sair dali.
Esperou pela noite, sua grande aliada, e, quando a urbe desconhecida e imensa caiu num sono de luzes apáticas, empregou todas as suas forças contra as grades da cela. Torceu os ferros em poucos minutos, alargou-os, flexibilizou-os.
Desimpedida a janela, fabricou uma espécie de páraquedas com os lençóis da cama e saiu para o exterior.
Antes do salto, porém, e como para se certificar que tinha tudo sob controlo, ainda apoiou os pés numa cinta de pedra lavrada na saliência que rodeava o edifício por fora.
Noé experimentou, por uma última vez, a engenhoca fabricada com lençóis, tomou balanço e projectou-se no ar de braços abertos para amortecer a queda.
Mas os seus esforços de nada valeram. O monstro estatelou-se no chão com a rapidez de uma cagadela de ave. Foi a ironia suprema para um homem da sua estatura, ali, estendido sem dar acordo de si, até ao clarear do outro dia, quando os guardas, alertados pelos transeuntes, vieram socorrê-lo.
Ao recuperar a consciência, a primeira coisa que Noé quis saber foi o nome do país em que se encontrava. Obteve como resposta um par de algemas nos pulsos.
Trouxeram-no de volta para a cadeia e encerraram-no num cubículo apertado, cheio de água até aos joelhos (até ao pescoço, no caso de um cidadão vulgar).
Noé teve que se conformar com a sua nova situação. Em vez de desesperar, passou a explorar as leis a seu favor. Manipulá-las, contorná-las, furá-las.
Assim, fez amigos na prisão. Guardas e reclusos, todos lhe obedeciam e eram serviçais.
Conseguiu que lhe dessem liberdade de sair e entrar quando lhe apetecesse.
Deste modo, podia voltar agora à cidade para rever os gigantes e matar saudades do convívio na taberna.
Não se cansava de contar que tinha tudo o que queria na cadeia. Até organizava concursos e apostas com os detidos. E ganhava dinheiro. Os seus melhores clientes eram os guardas e o próprio director do estabelecimento prisional.
Noé progredira em todos os sentidos com a sua nova vida.
Os gigantes ouviam-no, entusiasmados, e bebiam. Depois queriam saber os motivos da sua última briga com Júlio.
Mas Noé calou-se nessa ocasião. Ficou sem saber o que dizer. Inibido, viu-se de súbito despojado de argumentos. Deu meia volta na direcção da saída, depois voltou atrás e debruçou-se sobre o balcão. Viram-no engolir em seco. Foi a única vez em que fraquejou sem adversário à vista.


XXII

Balançando entre a noite e o dia, sobre a sua cama de lazeira, Júlio coçava a orelha esquerda, que ainda não curara por completo desde a última briga com Noé. A seu lado, estava Dora, com o seu aroma de pinheiro derramado sobre os lençóis.
Júlio tocou ao de leve na mulher, a ver se ela dormia. Estava impaciente por fazer amor com ela. Mas havia que ser prudente. Para não despertar a giganta afundada nos sonhos.
Um ponto de luz incandescente surgiu no horizonte dos seus olhos às escuras. Fazia lembrar uma estrela correndo sobre a planície, por trás das casas. Era sempre assim quando fazia amor com Dora a dormir. Havia uma luz, infalivelmente, diante dos seus olhos.
O gigante percebeu que podia avançar para a fonte de resina no pinheiro de Dora. O seu corpo confundiu-se com uma quantidade de bandeiras desfraldadas que se viam naquele instante à beira-mar. Júlio era ele, mas, ao mesmo tempo, não era. Estava longe, em liberdade, levado nas asas do desconhecido.
Na sua visão, aumentava o ponto que brilhava no horizonte. E o desejo crescia, borbulhando. Perguntava a si mesmo qual o sentido da luz vertiginosa que vinha na sua direcção, que recado traria no bico, que notícia de morte ou de vida (rápida esta, e decisiva; lenta a outra, caudalosa). Para não ser surpreendido, resguardava os olhos sob as pálpebras e esperava que tudo decorresse com normalidade.
Dora abraçava-o, apesar de estar mergulhada na inconsciência. Tinha o aspecto de quem era capaz de desvendar as mensagens mais enigmáticas.
Os corpos de ambos tresandavam de cheiros citadinos, que é como dizer putrefacção. Júlio passou a ver a luz dividida em duas, o que fez com que a projecção da claridade ganhasse novo impulso. Era como se um par de Sóis, inicialmente encobertos pelas casas, começassem a impor-se, finalmente, sobre a inclinação dos telhados.
Dora espremeu o marido com os seus membros electrificados de prazer. Fê-lo como se lhe fosse indiferente a identidade do companheiro. Ou como se estivesse a entregar-se nos braços de um novo homem.
Nessa altura precisa, Júlio viu uma terceira luz a crescer dentro da luz dividida em duas. Tudo isto somado aos bulícios que lhe trepidavam na cabeça. Atordoado pelo cheiro a resina, endureceu os músculos de espanto, preparando-se para a libertação que se aproximava.
Mas foi Dora quem se antecipou. Porque Júlio se continha nas ocasiões mais frenéticas. Contudo, a sua visão era clara e arrebatadora no momento de maior prazer.
As duas placas que já antes encontrara e que indicavam a direcção do Céu e do Inferno vinham agora ao seu encontro. Júlio recordava-se dos planos que arquitectara para tomar o poder na outra vida. Mas salvara-se a tempo de regressar à cidade.
Tudo indicava que os espíritos andavam confusos e extenuados de tanto andarem à procura do Céu e do Inferno. Por isso, apoquentavam os sonhos de Júlio, deixando as suas marcas de éter a rodopiar em círculos na visão asfixiante.
As placas do Céu e do Inferno estavam surpreendentemente iluminadas. A sua luz avançou sobre as casas, sobre o corpo de Júlio, enchendo de fogo tudo o que mexia.
A claridade rebentou em fios. Desfez-se para ganhar força. Os seus tentáculos espalharam-se pelo negrume em redor. Parecia uma noite de pomba, com foguetes explodindo no ar e fazendo mais negra a parte seguinte da noite.
A partir de então, Júlio só teria noites derramadas sobre os seus olhos. Já não havia significado para as rotas do futuro. Apenas a alegria triste sobre o corpo disperso de Dora.
A cama amoleceu, após a euforia dos gestos. Ficou o descanso. Que anunciava a morte.
Mas, entretanto, o corpo de Dora incharia de vida lá dentro. Mais um gigantinho viria ao mundo, em consequência daquele amor sonâmbulo.
Já tinham vindo muitos gigantinhos. Tantos que não era possível contá-los. Desde o primeiro filho, Dora nunca precisara de ajuda na altura do nascimento, nunca berrara de susto ou de medo.
Quando chegava a sua hora, estendia-se na cama, de pernas abertas, com a grande barriga quase tocando o tecto. Espremia-se, apertava os músculos, até o gigantinho aparecer com a cabeça ensanguentada na luz rarefeita do quarto. Ela puxava-o com as mãos enormes e aproveitava as suas primeiras lágrimas para o lavar.
Logo a seguir, embrulhava-o em panos. Como não havia água em casa de Júlio, as crianças tinham aquela cor de bezerros acabados de vir ao mundo.
Após o parto, Dora ia buscar água à fonte pública para lavar a casa. Trazia os baldes cheios numa mão e na outra o recém-nascido.
E enquanto esfregava a sujeira da parede, as vidraças partidas, lavava o gigantinho acabado de nascer. Assim, resolvia uma coisa e a outra.
No dia em que Dora pariu o primeiro filho, Júlio regressou a casa, para cozer mais uma das suas bebedeiras, e deu uma sova mestra na mulher, a pretexto de ela o não ter informado do nascimento da criança.
Além de andar constantemente envolvido em brigas com Noé, Júlio atravessou os anos sempre pegado de rixas com Dora. Crivava-a de nódoas azuladas no corpo, corria a casa insultando, exigindo, ordenando, impondo.
O seu comportamento só se alterou a partir da altura em que descobriu o anel de Dora caído a poucos metros da porta de casa. Aí, a sua raiva abrandou. E as dúvidas penetraram no seu espírito.
Júlio nunca mais voltou a ser o mesmo gigante, colérico e espalhafatoso, que não perdoava no instante de apontar a lâmina à garganta inimiga.
Agora, apagava-se como um candeeiro a que vai progressivamente faltando o petróleo.
O tempo passava e o gigante estava cada vez mais amarfanhado. Não conseguia esquecer o que sucedia, à noite, quando surgiam cantares estranhos e melosos à flor dos telhados.
Revirava-se na cama, cheio de calores, coçava a orelha, as feridas remotas, os ardumes. De olhos fechados contra as estrelas, via os seus restos explodirem na escuridão. Um martírio.
Tudo parecia anunciar uma fatalidade. Tal como a dos cachorros enterrados na mata.
Júlio estendia as mãos para o lugar de Dora e já lá não encontrava o seu corpo. Apenas a cova no colchão. De repente, a mulher tinha abandonado o sossego da cama, à revelia de Deus, embora nos lençóis ainda residisse um leve aroma de pinheiro.
O marido ficava inquieto. Porém, não ia à procura da mulher, o que era sinal de que lhe restava pouco tempo de vida. Porque um gigante nunca pode esmorecer, sob o risco de o vazio tomar conta dos seus órgãos, dominando-os, esfrangalhando-os, amolecendo-os.
Era o que lhe estava reservado. Na verdade, desde há anos que uma estranha figura de manto pela cabeça o perseguia pelas ruelas da cidade. Às vezes, a sombra afastava-se, outras vezes rondava-o, comprimia-lhe o peito, ameaçando levá-lo consigo.
O gigante sempre resistira ao cerco da morte. No dia em que havia destruído os camiões, até a sacudira numa corrente de ar. Nunca a tolerara perto de si.
No entanto, Júlio chegara a uma idade em que o melhor que tinha a fazer era estar quieto sobre o colchão e deixar que a morte gerisse o resto da melhor forma.


XXIII

Desde que os passeios da mulher nocturna haviam surgido pela primeira vez, sabia-se que alguma influência teriam no desenrolar desta história.
Nos últimos tempos, ela andava desaparecida, o que coincidiu com o período de reconstrução da cidade e com a ausência de Noé.
Mas, após o regresso do gigante, nessa mesma noite, quando já quase afloravam os primeiros raios do dia, a mulher da camisa de dormir transparente voltou a inquietar os monstros com as suas melodias que faziam estremecer a aspereza dos colchões.
Em certa casa, babava-se um gigante de rosto escondido no travesseiro. Noutra, uma giganta volvia-se de impertinências nas ancas. Mais além, acendia-se uma luz...
Desacostumado que estava à casa vazia, Noé passeava rente às paredes, como se estivesse à espera de alguém, de um morcego, de uma mulher ou de uma Lua perdida no firmamento. Nada parecia capaz de consolar a solidão do gigante. Dava a impressão de haver uma fogueira oculta ardendo nas paragens mais imprevistas da sua alma.
Incapaz de estar em casa, Noé saiu para a rua, nervoso e olheirento. Pôs-se a calcorrear as esquinas e becos, como outrora Júlio tivera por hábito fazer.
Só que Noé não tinha degrau de pedra à entrada da oficina onde descansar o ardume das cinzas, nem cadela lambuzona para lhe adoçar o inchaço das veias nos pés.
Assim, andava perdido sob os beirais e varandas de sombras. O gigante procurava a confirmação do invisível, do que é preciso compreender com a nitidez de uma primeira ideia.
Os suspiros da mulher misteriosa moravam agora em outro recanto, outro leito, outra casa, outro corpo.
Quando se vagueia pela noite das ruas, o prazer é o ferro da dor que nos consome. Assim, Noé mais nada tinha a fazer senão procurar o sítio onde se encontrava a mulher com camisa de dormir transparente. Havia de saltar o muro e diminuir a distância que o separava dela. Havia de dar cabo daquele que tivesse tomado o seu lugar. Havia de reconquistar o corpo que perdera.
Mas Noé teve dificuldade em enfrentar a realidade quando percebeu verdadeiramente o que se passava. Uma coisa era prever, outra era sentir na pele.
Chegado a uma esquina pouco frequentada, ouviu os gemidos que lhe eram tão familiares. E deixou-se ficar imóvel, aterrado, incapaz de qualquer avanço ou recuo. A poucos metros de distância estava a mulher com quem ele tinha passado tantas noites. E ele não podia fazer nada. Sentiu que o pânico o invadia de uma forma nunca vista. Nem a presença de Júlio era capaz de ter o mesmo efeito sobre ele.
Apesar de os gemidos virem de uma casa abandonada, não se atreveu a dar um passo, a mexer um dedo.
Nunca pensara que fosse possível alguém dar o mesmo prazer á mulher com quem ele se fartara de dormir. Os mesmos sons, os mesmos sussurros, os mesmos ais...
Noé deixou-se ficar ali por tempos infindos. Até ao nascer do Sol. Esqueceu-se dele mesmo. Quando veio a si, horas depois, já não se ouvia nada. Só o eco que desaparecera após a fuga dos amantes.
Enquanto se espreguiçava, o monstro recordou a mulher arisca com quem anos antes fora casado e com a qual se desentendera definitivamente por causa de uns cortinados. Noé regressara, então, ao bafo quente da mãe, ao lado de quem passava as tardes debruçado na janela.
Todavia, a verdade ainda não tinha sido completamente desvendada. Porque Noé não se separou da mulher por causa de umas simples cortinas. Estas tinham sido uma desculpa para encobrir o que realmente se tinha passado.
Chegada ao fim a cerimónia de núpcias, Noé e a esposa não quiseram saber dos dois ou três convidados que lhes tinham feito companhia na igreja. Desatinados, precipitaram-se numa correria para uma casa de cinema, onde se exibiam filmes pornográficos.
Na altura do intervalo, já estavam suficientemente excitados com as cenas observadas. Por isso, vieram de novo a correr para se encerrar na residência onde passariam a viver dali em diante.
Despiram-se em movimentos acelerados e logo que o gigante penetrou a companheira, sentiu uma dor aguda no pénis, enquanto um cheiro a sangue invadia a cama esverdeada pela escuridão.
Concluindo que havia algum problema com a giganta que acabara de desposar, Noé acendeu a luz do quarto e viu aquele enorme poço de sangue no lençol.
A sua primeira reacção foi agarrar-se ao membro da virilidade, não fosse a mulher amputá-lo à dentada, enquanto ele se encontrava desprevenido.
Depois, correu a fechar-se no lavatório, enrolou o membro ferido com uns restos de camisa que encontrou à mão e regressou a casa da mãe, mantendo o pénis resguardado durante uma quantidade de anos. Porque ouvira dizer que uma ferida quando sara é sinal de morte à espreita, passou a ter o cuidado de vigiar diariamente o estado das suas partes íntimas. Com o canivete, reabria a ferida, sempre que a mesma estava perto de sarar. De tantas vezes ter mexido e remexido onde não devia, Noé viu o seu órgão inchar até ficar do tamanho de uma abóbora.
Mais tarde, haveria de mostrar as partes íntimas aos gigantes reunidos na taberna, na certeza de que aquele era um dos seus motivos de orgulho. De uma coisa não restavam dúvidas: num eventual confronto entre o seu pénis e o de Júlio, o vencedor era indiscutível.
O pénis de Noé ganhara, assim, a fama de ser o maior da cidade. E Noé mantinha-o envolto em panos, para garantir que não havia outro tão imponente.
Desta forma, conhecidas e reconhecidas as capacidades sexuais de Noé, muitas gigantas ganharam o hábito de o procurar durante a noite. E até gigantes de barba rija faziam o mesmo. Todos encobertos pelo segredo ou alegando motivos de negócios cujos resultados já se tornaram sabidos de todos.
A própria mulher com quem Noé fora casado durante poucas horas (agora mãe de um sem número de filhos e companheira de outro gigante) era uma das que mais assiduamente o visitava pela calada da noite.
No entanto, alguém lhe tinha passado a perna durante o período em que estivera preso. E, agora, nem as espantosas qualidades do seu órgão genital pareciam suficientes para ter de volta a única mulher que o levara ao altar.
Poucas semanas depois, soube-se que esta passou a queixar-se dos mesmos males de Dora. Apertos no peito, picadas nos pés, tremores de frio, dores de cabeça e de costas, entre muitos outros motivos de suspeita. O curandeiro foi de novo chamado a intervir. Durante as suas visitas, reunia-se muita gente à porta da giganta, todos querendo saber e ver o que se passava dentro do quarto. O certo é que a giganta melhorou ao fim de uns tempos. Mas nem assim quis voltar aos braços do antigo marido e amante.
Desgostoso por ter sido preterido, Noé deitou a correr em gritos escabrosos pela cidade, anunciando uma grande desgraça para o mundo, como se quisesse que a mãe o ouvisse lá nas alturas do Céu.
Vieram muitas gigantas à janela ver o que se passava e não queriam acreditar quando perceberam tratar-se de Noé.
Chamavam-no, convidavam-no a entrar em suas casas, instigavam-no a mostrar o que valia, mas ele não queria saber e continuava em frente sem qualquer destino. Fazia lembrar um rio sem freio que não detém os olhos nas pedras húmidas do cais, para ir desaguar adiante, sempre mais adiante...
Nem as brigas com Júlio pareciam capazes de lhe devolver o ânimo. Se o rival lhe aparecesse pela frente naquela altura, armado de pistolas e varapaus, o mais certo era Noé não o ver, não lhe ligar, não querer saber quem era o homem mais forte da cidade.
A sua vontade era berrar, berrar o mais alto possível, e destruir tudo o que lhe aparecesse pela frente. Não queria lutar, só queria destruir. E assim foi fazendo, à medida que passava pelas ruas, dando cabeçadas nas portas e janelas, escaqueirando candeeiros de ruas, esvaziando contentores de lixo, atirando-se contra as paredes, como se tudo estivesse prestes a deixar de existir...


XXIV

A taberna era o centro da cidade, para onde convergiam todos os escarros, fumos, arrotos, bufas, apostas, risadas, bebedeiras.
A maioria dos gigantes entrava em silêncio, para não dar nas vistas, indo confundir-se com os ruídos dispersos que vagueavam nas sombras. Mas, ao fim de pouco tempo, já não se conseguia saber quem falava e berrava mais alto.
Juras, ameaças, discussões e arengas aconteciam a toda a hora.
Naquele dia, Júlio apareceu mais calado do que o normal. Trazia sonhos carregados de dúvidas, noites mal dormidas, recordações de um anel por esclarecer, pesadelos de cães com cabeças humanas, doenças estranhas de Dora...
O monstro já quase só vivia por viver. Estava escrito na sua cara.
A bebida era a sua tábua de salvação na cidade onde continuavam a chegar camiões atrás de camiões, descarregando gigantes em série.
Júlio encostou-se ao balcão da taberna, sem dar nas vistas, e fez por diversas vezes sinal ao empregado, que distribuía copos e garrafas pelos bêbados.
Mas ao notar que não o atendiam, logo se retraiu. Não queria dar mostras de ânsia.
Enquanto esperava que chegasse a sua vez, sentia moedas a tilintar no relógio do cérebro e ia viajando com os olhos pelos presentes.
Quando lhe perguntaram o que queria, Júlio pediu. Mas teve que pedir outra vez. Porque o empregado não queria acreditar no que ouvia. E nem à terceira tentativa parecia convencido.
Então, o gigante deu um berro e exigiu imediatamente que o seu pedido fosse satisfeito. Um barril de aguardente! Exacto. Um barril de aguardente. Que Júlio pretendia beber ali à vista de todos.
Sentou-se a uma mesa e logo todos os outros gigantes se levantaram, afastando-se receosos.
Ninguém queria estar ao pé dele quando a aguardente o fizesse tombar para o lado como uma árvore centenária. Ninguém queria ser acusado de cumplicidade com o que pudesse vir a acontecer.
Júlio varreu com a palma da mão todas as pedras de dominó que se encontravam em cima da mesa. Depois, pôs o barril a seu lado no chão e encheu o primeiro copo. Nessa altura, alguns gigantes repararam que ele sorriu comedidamente. Era a primeira vez que o fazia. Depois, seguiu-se o segundo copo, o terceiro...
Na taberna, todos os gigantes estavam suspensos do ritmo com que Júlio vazava copos de aguardente atrás uns dos outros. Se alguém se aproximasse naquela ocasião com um fósforo aceso, o mais certo era o gigante desatar a arder como uma tocha.
Nunca se tinha visto alguém beber daquela maneira.
Júlio esvaziou o barril de aguardente e parecia ainda disposto a repetir a proeza com um segundo. Mas nem foi preciso que alguém o impedisse de fazê-lo. Porque poucos minutos depois de ter bebido a última gota, o gigante ficou imobilizado, com as mãos sobre os joelhos, de olhar fixo no vazio, sem mexer um único músculo da face.
Uma vaga de frio atravessou o grupo de curiosos que se tinham reunido em torno de Júlio. Ninguém se arriscava a fazer prognósticos. Se o gigante sobreviveria, ou não. Se desmaiaria, ou não. Se seria capaz de se levantar, ou não. Se rebentaria como a lava de uma cratera, ou não. Se adormeceria numa pacatez de suíno com o focinho derreado na pia, ou não.
Mas era escusado puxar muito pelas ideias. Pois Júlio era fértil em surpreender os gigantes. Ou quem não se lembrava da forma como resistira à potência dos camiões, tendo conseguido dominá-los a todos?
Só que desta vez Júlio não era o mesmo. Já não tinha a garra e o poder de outros tempos.
E a verdade é que não voltou a sair da taberna pelo seu pé.
A cabeça não lhe descaiu um milímetro, o corpo não se ajeitou ao assento como o dos mortos na urna, ninguém lhe ouviu pedir um agasalho. Ficou ali, como se fosse para sempre, sentado na taberna, até que alguém percebesse o que tinha acontecido...
De início, pensaram que a bebedeira havia de lhe passar e deixaram-no entregue a ele próprio. E, em poucos minutos, a animação já tinha voltado à taberna como se nada tivesse acontecido.
Um grupo de gigantes encostou Júlio a um canto muito bem sentado na sua cadeira e preparou a mesa para um novo jogo de dominó. O gigante estava imóvel, absolutamente imóvel, como um boneco de cera no seu canto de museu.
Enquanto jogavam e bebiam, os presentes iam conjecturando sobre os últimos acontecimentos.
Falavam do curandeiro, falavam de Noé, falavam do súbito desaparecimento da cadela, falavam das doenças de Dora, falavam da mulher que passeava de noite sobre chaminés e quintais.
Muito se dizia, muito se murmurava, mas com cuidado, não estivesse Júlio a escutar tudo no seu silêncio mortal. Até porque o gigante estava com cara de quem ainda se encontraria em condições para urdir estratégias exímias contra o grande rival.
Um gigante aproximou-se de Júlio e acenou-lhe com a mão à frente do nariz, a ver se ele reagia.
Júlio não deu qualquer sinal de consciência. E os gigantes puseram-se a falar de Noé e da sua última cena de andar aos berros pela cidade sem razão aparente. Falaram da carta que chegara do Paraíso e em cima da qual nunca mais tinham posto os olhos, falaram das burlas, falaram da cadeia e do que ele teria pintado lá dentro para se safar, falaram das amantes que o visitavam pela noite dentro.
Os anos tinham passado sobre Júlio e Noé. Tinham travado lutas durante grande parte das suas vidas para ver qual deles conseguia tornar-se o homem mais forte da cidade e, afinal, hoje, qualquer um deles não parecia capaz de resistir a um simples desgosto emocional.
Naquele momento, bastaria a Noé entrar na taberna e vencer Júlio com duas simples estaladas na cara, que ele tombaria decerto redondo no chão.
E a Júlio, se estivesse sóbrio, bastaria esperar por Noé numa das esquinas da cidade e dar-lhe um pontapé no traseiro, que ele naturalmente se estatelaria de nariz ao comprido.
Como não havia maneira de Júlio recuperar a consciência, alguns gigantes tiveram a ideia de ir à procura de Noé. Talvez deste modo Júlio reagisse. Talvez ante a visão do seu maior inimigo, fosse capaz de vencer os litros de aguardente que ingerira.
Se fosse preciso, que Noé desancasse ali mesmo o marido de Dora. Que o salvasse com a maior sova da sua vida. Antes que fosse tarde demais.
Estavam todos dispostos a esquecer o passado de intrujices de Noé. O que importava era resolver o caso de Júlio. Para que se decidisse de uma vez por todas quem era o homem mais forte da cidade.
Os dois tinham que se enfrentar de novo. Os gigantes queriam ver reavivada a luta entre ambos, de forma a tornar clara - e sem reticências - a vitória de um sobre o outro, como desde o princípio do livro fora prometido.
Um deles tinha que vencer, tinha que matar, tinha que destruir. Não interessava quem.
Em último caso, o que interessava era que a guerra entre os dois gigantes jamais terminasse. Que vivessem ambos aos murros por muitos e longos anos. Caso contrário, a cidade perderia sentido. A sua história findaria ali.
Que fossem chamar Noé, então. E depressa. Porque Júlio já estava sentado na taberna há mais de três horas, sem ganhar nem perder, sem lágrima nem riso...


XXV

Noé não apareceu na taberna para presenciar o estado em que ficara o seu maior adversário depois de ter ingerido o barril de aguardente.
Júlio, por seu turno, continuava inerte como uma pedra, sem dar o mínimo sinal de disposição para o que quer que fosse.
Alguns dos presentes na taberna, com receio do que pudesse vir a acontecer, sugeriram que era melhor fazer qualquer coisa. Ao menos, levar Júlio para junto dos seus.
Transportaram-no em braços, para casa. Júlio estava frio como uma cadáver. Muita gente fez cortejo atrás dos gigantes que o carregavam (um pelas pernas, outro pelos braços) como se aquele fosse já o seu funeral.
À porta da casa de Júlio, estavam Dora e todos os seus filhos.
Antes de verem o pai, os gigantinhos pensaram que era mentira o que lhes tinham vindo dizer. Quando o avistaram ao longe, puseram-se a chorar baixinho. E quando o pai chegou ao pé da porta de casa, estendido na horizontal, desataram a gritar o mais alto que podiam.
Dora chorava agarrada a dois panos de loiça. E perguntava em altos berros quem lhe sustentaria os filhos a partir de agora.
Deitaram o gigante sobre a cama, em posição de morto.
Quiseram entrelaçar-lhe os dedos no lugar do peito, mas ninguém foi capaz de lhe tirar a mão que estava enganchada no fundo de um dos bolsos. Como se lá estivesse escondido o mais precioso tesouro...
Dora ficou de joelhos à sua beira, chorando e assoando-se nas dobras do lençol.
O quarto foi invadido por muitas gigantas, que se puseram a rezar orações fúnebres.
Contudo, lá no seu poiso sobre as nuvens em que descansam os que estão à beira de se despedir da vida, Júlio mantinha-se atento ao que o rodeava. Queria ver o que ia acontecer ao seu corpo, aos despojos do seu corpo, aos restos do seu fígado carcomido pelo álcool.
O gigante estava em dois lados ao mesmo tempo. No quarto, onde se rezava pela sua alma e a caminho da nova vida que o esperava.
Era o processo de separação da alma e do corpo, partindo o gigante em duas partes.
Com os olhos do corpo, Júlio observava o quarto repleto de gigantas comovidas, derramando lágrimas sobre os xailes, rezando em coro pela sua salvação; com os olhos da alma, mirava o complexo movimento dos astros em múltiplas rotações no abismo do Universo sem queda, onde afinal não havia Deus, nem Diabo, só azuis de infinitas chamas, além, sempre além da visão mais aguda.
E enquanto a sua alma vagueava no Cosmos, à procura do sítio exacto onde havia de anichar-se dentro de uma esfera de penas luminosas, o seu corpo estremecia ao som das vozes que enchiam o quarto de lamentos e soluços.
No entanto, a morte nunca mais aparecia. Já tinham passado várias horas desde que Júlio esvaziara o barril de aguardente. E nem assim.
Aquele era o momento mais ingrato e cruel. Porque era o momento que antecedia a decisão. A grande decisão. A decisão que acabava por fazer as coisas pender para um lado ou para o outro.
O marido de Dora tinha experimentado quase tudo na vida. O amor e o ódio, a alegria e a dor, a fraqueza e a força. Tivera a maior ambição de qualquer ser vivo. E, agora, a decisão alastrava nas suas entranhas. Apesar de nunca se ter esclarecido, preto no branco, quem era o homem mais forte da cidade.
Só que o passado não admitia remendos. Muito menos o futuro.
E o presente de Júlio era a ameaça de morte que pendia sobre a sua cabeça. Porque a verdadeira morte é aquela que não se vê, que não se sabe quando chega, nem de onde vem. Caso contrário, fica sempre aberta uma nesga no tempo, por onde os espíritos regressam ao mundo das suas aflições.
Estavam os gigantes e gigantas neste impasse, em casa de Júlio, sem saber se ele morria, ou não, quando de súbito toda a gente voltou a cabeça na direcção da janela do quarto. Ali estava Noé, muito pálido e esgazeado, a olhar, a olhar...
Ninguém soube o que havia de fazer. Se afastar o rival dali para fora, ou se convidá-lo a entrar, para que aproveitasse a última oportunidade de vencer Júlio enquanto este ainda era vivo.
Mas Noé não esperou que fosse alguém a decidir por ele e avançou por entre a multidão compacta de gigantes.
A sua atitude repentina provocou gritos e súplicas de piedade. Pediam-lhe que tivesse dó de Júlio, que não o desancasse, que esquecesse as lutas do passado.
Dora ainda tentou impedi-lo de se aproximar do marido, ainda tentou puxá-lo de forma a evitar a destruição pecaminosa do morto, mas Noé estava indomável e transtornado.
Conseguiu chegar ao pé da cama, onde Júlio permanecia impávido e sereno, como se há muito esperasse por aquela hora, a hora de todas as verdades.
Muitos dos presentes perguntaram-se o que aconteceria a seguir. Se Júlio estaria a fazer fita à espera de apanhar Noé desprevenido, ou se estaria realmente a morrer. E interrogaram-se, também, sobre as reais intenções que haviam trazido Noé até junto da cama de Júlio. Se viria saber da sua saúde, ou se lhe viria dar cabo dos últimos ossos.
E antes de se saber quais seriam os planos de cada um dos gigantes, toda a gente se pôs em fuga, com medo de que a casa pudesse ir pelos ares a qualquer instante. Pessoas de todas as idades e crenças acotovelavam-se na tentativa de salvarem o couro, espezinhavam-se aos encontrões e empurrões pela rua acima, a fim de irem resguardar-se nos seus covis. Se a casa de Júlio fosse pelos ares, havia de ir, mas longe da sua vista.
Só os filhos de Júlio e Dora não fugiram completamente. Resguardaram-se na esquina mais próxima, desconfiados, inconformados, revoltados. Porque sempre tinham um pai e uma casa a defender.
Contudo, nada do que se temia aconteceu. Dentro do quarto, apenas se ouvia o silêncio das lágrimas de Noé. A dor corria-lhe pela face sobre as rugas em todas as direcções. Tinha os olhos vermelhos e quase fechados de tanta água a transbordar.
Ninguém esperava por aquelas lágrimas. Nem o próprio Noé. Por isso, elas corriam com mais liberdade.
O silêncio que invadiu o quarto de Júlio alastrou a toda a cidade. Nas tabernas, as vozes calaram-se, os jogos pararam, as discussões acabaram. Nos caminhos, os carros encostaram à berma, os miúdos deixaram de correr e gritar.
Parecia Domingo à tarde numa aldeia distante na serra. Mas era uma quinta-feira normal de azáfama na cidade de todas as violências e desordens. E não se ouvia nada num raio de quilómetros. Porque aquela tarde ficaria para sempre marcada na vida de todos os gigantes. A tarde em que Júlio e Noé se enfrentaram, por fim, sem desacatos, sem pancadaria, sem agressões.
Noé estava sentado na beira da cama de Júlio, com a respiração calma, mais calma do que nunca, e uma mão poisada sobre a única mão livre que Júlio tinha sobre o peito.
Agora, o cadáver não estremecia. Como se todas as linhas da sua existência tivessem convergido para um único ponto. A própria mão que Júlio tinha fechada no bolso afrouxara.
Noé inclinou-se para a frente, sobre Júlio, deixando cair as lágrimas sobre o rosto e o peito do moribundo. Estava em vias de perder o único bem que lhe restava. O seu maior inimigo. A única razão do seu viver.
Sem Júlio, não faria mais sentido aspirar ao trono de o homem mais forte da cidade. A partir de agora, ele conseguiria tudo sem luta, sem trabalho, sem esforço. O fim de Júlio era o início da sua maior e mais atroz solidão.
Quando Noé aproximou o seu rosto do de Júlio, este ainda teve um arrepio, ao ver assim tão perto o inimigo. Parecia outro, desfeito, enfraquecido, cortado às fatias por dentro. Estava irreconhecível. E Noé pensava o mesmo de Júlio. Tanta mansidão no homem que sempre o quisera desfazer em pedaços.
Os dois gigantes olharam-se de olhos fechados. Um porque os tinha cheios de lágrimas, o outro porque já não os abria há horas. Nem voltaria a abrir.
Nesse preciso momento, o anel de Dora caiu do bolso de Júlio, rolando pelo soalho como um arco de criança perdido no asfalto depois de uma catástrofe.
Noé baixou mais a cabeça, fazendo com que os seus lábios gretados e grossos poisassem com leveza nos do inimigo. Uma boca gélida e outra escaldante.
A história tinha chegado ao fim. E Júlio, também. Naquele instante exacto.
Noé sentiu que o inimigo abria a boca, à procura de ar, enquanto a língua lhe rodava como uma hélice. E correspondeu ao seu gesto. Tendo o cuidado de rodar a língua na mesma direcção da de Júlio.
Enfim, os dois estavam de acordo. Estiveram sempre durante o tempo que durou aquele beijo. Que só terminou quando a boca de Júlio, exausta, se descomprimiu, e a língua se deteve, encolhendo progressivamente, sem que a de Noé conseguisse jamais alcançá-la...

FIM