I
A
história que passo a contar deu-se numa terra onde as pessoas tinham
uma dimensão física singular. Eram grandes, fortes, altas,
musculosas, verdadeiros gigantes. Mas quem chegava a essa terra a uma
hora em que não se via ninguém nas ruas notava as casas de tamanho
vulgar amontoadas umas de encontro às outras. E algumas construções
eram tão frágeis que nada fazia prever o tamanho descomunal dos
seus habitantes.
Mas
era verdade. Imaginem que as linhas de que se forma esta página
inicial poderiam ser as simples marcas digitais de um dos dedos
desses gigantes. Por aqui se fica com uma ideia.
Os
gigantes ocupavam tudo à sua volta, roçando com as cabeças nos
tectos, as barrigas enormes espremidas contra os móveis,
acotovelando-se, famílias inteiras nos quartos exíguos.
Dificilmente algum deles que fosse mais avantajado de gordura
atravessava uma porta.
Esse
dito povo gigante foi ganhando forma e vulto, à medida que, um por
um, família a família, iam todos sendo expulsos de outras
localidades, onde não eram aceites, devido à sua superioridade
física, ou simplesmente não eram fáceis de integrar, por esta ou
aquela razão. Eram temidos pelos vulgares cidadãos e, por isso,
foram marginalizados.
Acabaram
por ser reunidos numa zona abandonada por falta de segurança nas
construções.
A
partir dessa altura, escorraçados os monstros como temíveis
leprosos, tudo era possível de acontecer, desde o maior amor ao ódio
mais sublime e carregado de vingança.
As
mulheres passavam os dias acocoradas de tristeza e ressentimento
dentro dos lares. Esperavam algo que não vinha, talvez uma paz
longínqua, um sonho irrealizável, um silêncio sempre adiado na
paisagem cheia de vibrações, rumores distantes, notícias confusas
que circulavam sem precisar de jornais ou correio. As gigantas
sofriam nas suas poses de encolhimento com xaile pela cabeça.
E
assim ficavam as tarefas desarrumadas nas casas, porque um gigante,
como se pode calcular, dava sempre muito que fazer em seu redor. Uma
simples volta na cama durante a noite podia virar candeeiros, mesas,
vasos.
No
outro dia é que se notavam os estragos. Além de que as abundantes
crianças, com as suas traquinices e brincadeiras, conseguiam
resultados devastadores um pouco por toda a casa.
Mas
as gigantas não estavam para se ralar com isso e quase adormeciam
sobre o caos dos lares.
Quanto
aos homens, a maior parte deles passava o dia nas tabernas, bebendo,
jogando cartas, dominó ou damas. Se fazia bom tempo, muitos vinham
para o lado de fora encostar-se às paredes, em conversas mornas e
trovejantes, lentas e longas, como as tardes dos Verões
insuportáveis. Passavam horas derreados ao sol, apodrecendo os
corpos, a começar pelos dentes. Cheiravam a suor e comida azeda nos
estômagos. E para ali estavam naquela terra de coisas por saber,
segurando o movimento da luz nos seus rostos sebentos e escuros.
Não
foi de ontem, nem é de hoje. A história dos gigantes está sempre
nas nossas cabeças, é uma sombra imensa que fica, que teima em
habitar a memória do mundo, essa sim, casa grande bastante para
albergar os seres de que vos falo.
Os
acontecimentos que se seguem tiveram lugar dentro de espaços
vulgares com paredes e tectos encardidos, janelas com vidros a
flamejar para as ruas inundadas de violência, como em nenhuma outra
terra se ouvira ainda contar.
A
história começa com dois gigantes que, desde o primeiro dia em que
se encontraram, e sem que alguma palavra tivesse sido trocada entre
eles, se odiaram para sempre, nada tendo sido possível fazer ante a
dimensão de tão estranha e repentina inimizade.
Júlio
e Noé olharam-se e pronto! Foi uma aversão definitiva, funda, sem
remédio. A partir do momento fatal em que se conheceram, qualquer
pormenor podia desencadear a luta mais encarniçada entre ambos. E
que ninguém se atrevesse a apartá-los. Porque todos sabiam que
Júlio e Noé disputavam entre si o título de o homem mais forte da
cidade. Era um ceptro feroz, que não admitia partilhas nem acordos
de espécie alguma.
Estes
dois gigantes eram mais bravos que os outros, que aceitavam
resignados a sina de serem relegados para segundo plano.
Até
se chegar aí, porém, fizeram-se muitas lutas, que foram a pouco e
pouco seleccionando os mais resistentes. Júlio e Noé saíram sempre
vencedores sobre os adversários que tiveram de enfrentar.
Faltava
decidir, apenas, o resultado do ódio entre os dois mais fortes da
cidade. Pelos olhares furibundos e incendiados que ambos trocavam,
temia-se a hora em que um venceria o outro. Era uma questão de
disparar contra o alvo certeiro a última flecha endoidecida de
veneno. Depois, a cidade repousaria sobre as cinzas do vencido e
entregaria o ceptro ao vencedor, que passaria a dominar a vida de
todos como um boi capaz de roçar as nuvens com os chifres.
Mas
ainda havia muito para ver e ouvir, até que se encontrasse um
vencedor para aquele litígio. Ainda circulariam notícias de muitos
vidros partidos e lâminas rodopiando nos ares de relâmpagos, com
portas desancadas por trovões sobre os carros amolgados, de mesas e
cadeiras estilhaçadas em mil pedaços de chumbo invadindo tabernas e
lares.
De
cada vez que Júlio e Noé se confrontassem seria sempre como se uma
dúzia de bombas-relógio estourassem sincronizadas no mesmo milésimo
de segundo. A destruição de um deles seria, com toda a evidência,
a única saída para aquele ódio, cujos contornos escapavam ao
próprio Deus.
Por
isso, era necessário deixar que tudo acontecesse, que nada ficasse
por resolver, que a disputa chegasse às últimas consequências.
Então, era deixá-los esgrimir os punhos cerrados, enormes, como as
luvas de boxe vistas num écrã de estádio olímpico, as facas
atravessando os medos, os gritos desesperados das gigantas
descabeladas às janelas, doidas e feridas de lágrimas cinzentas
como chuva a escorrer pelos beirais. Os dois monstros aspergiam a sua
maior violência contra as fachadas das casas de uma forma tal que
até o Universo parecia correr o risco de desabar quando a luta
tivesse o seu desenlace.
Júlio
e Noé viviam o dia a dia com o objectivo de se espatifarem
mutuamente com murros, pontapés, gumes afiados na goela, de que num
último instante um deles conseguia sempre libertar-se, ao atirar o
objecto de morte para longe, ante os olhos arregalados dos
circunstantes que lhe seguiam a rota, dando àquela fracção de
segundo uma imobilidade de séculos.
Ao
fim de horas, as gigantas fechavam as janelas e aferrolhavam as
portas, prevendo-se que ficavam a vigiar cuidadosamente por detrás
das cortinas. Porque o mais certo era o desfecho das brigas entre
Júlio e Noé nunca ser claro, podendo o ódio entre ambos ressurgir
quando menos se contasse. Mesmo que um deles estivesse caído por
terra com o rosto em postas de sangue e o outro se encontrasse colado
de exaustão a uma parede ou de cabeça metida na bagageira de um
automóvel, qualquer deles era capaz de ressuscitar num ápice e
voltar ao ataque perante o gáudio maldisfarçado da massa de
gigantes que não arredava pé.
Durante
anos, nunca houve descanso na cidade habitada por aqueles dois
colossos do ódio. Ao ponto de se ter tornado um hábito fazer
apostas a dinheiro, ou a copos, sobre o desfecho das brigas que
faziam com que a cidade fosse temida muitos quilómetros em redor.
II
Júlio
era pai de tantos filhos que se tornava impossível contá-los.
Andavam sempre a correr em várias direcções, nunca sendo possível
saber os que já estavam identificados ou não.
Tinham
vindo ao mundo atrás uns dos outros, o que não era culpa de
ninguém, dizia Dora, esposa de Júlio, enquanto ia passando o tempo
em lavagens monótonas ao exterior da casa, a fim de dar um aspecto
de asseio aos vizinhos e transeuntes.
Dora
lavava a porta e as vidraças (muitas delas estilhaçadas) com sabão
e água que ia buscar à fonte pública. Esfregava tudo por fora, a
soleira, os degraus de pedra, o próprio caminho, espalhando frescura
à sua volta, ao mesmo tempo que olhava para a esquerda e direita da
rua, procurando ver se as demais gigantas se apercebiam do rigor com
que tratava dos seus domínios ou se, invejosas, a imitavam.
A
casa de Júlio e Dora não passava de um casebre composto de quarto e
cozinha, parecendo que, ao fim dos dos anos, tudo estava mais próximo
de ruir. O telhado metia água por incontáveis gretas que as
cabeçorras dos gigantes nele tinham aberto com desajeito. Os vidros
partidos eram vedados com plásticos e tábuas pregadas ao desbarato,
mas as futuras brigas em família encarregar-se-iam de as partir de
novo. Buracos nas paredes eram muitos e de variadíssimas
profundidades. E o soalho rangia sob o andar pesado dos gigantes,
ameaçando desconjuntar-se mais dia menos dia.
Júlio
tinha uma oficina perto de casa, onde não faltavam aparelhos e
utensílios de uso diverso que lhe eram confiados para reparação.
Fogões, esquentadores, frigoríficos, panelas, telefonias,
brinquedos, televisões, vassouras, espanejadores, bancos, mesas,
candeeiros. E, ao contrário do que acontecia em casa, o gigante
movia-se entre todos aqueles objectos com uma ligeireza e facilidade
inacreditáveis. Era como se ao entrar na oficina virasse anão,
subitamente, ou gato a passear-se sobre uma qualquer gaze ou renda,
sem deixar marcas de reboliço.
Júlio
adiava permanentemente a devolução dos objectos que tinha para
conserto. Quando algum gigante se lembrava de perguntar pelo seu
relógio ou pelo seu penico de loiça fendido, o artista das
quinquilharias arranjava sempre desculpa persuasiva. E, com o tempo,
até os mais impacientes desistiam de o aborrecer, perdendo a
esperança de reaver as suas coisas. Mas ninguém levava a mal o
gigante, pelo seu desleixo, devido aos muitos sarilhos em que se
metia.
Em
casa, Júlio não fazia coisa que se visse. Quando tomava alguma
iniciativa era para derrubar o que estava à sua frente. Fazia-o por
fúria ou por falta de jeito, conforme os casos. Há muito que Dora
desistira de o tentar corrigir.
A
mulher de Júlio não era limpa nem asseada, ao contrário do que se
podia depreender das lavagens que fazia ao exterior da casa. Quando
terminava as suas tarefas, enterrava-se no colchão da sua preguiça,
indiferente às horas, desinteressada dos urros, desmandos e
gritarias dos filhos, ou mesmo fazendo como eles, envolvendo-se em
quezílias, disputas, conflitos.
À
medida que cresciam, os filhos de Júlio tornavam cada vez mais ténue
o espaço respirável dentro de casa. Em certas alturas, viam-se
mesmo na obrigação de passar uns por cima dos outros para apanhar
uma mosca ou uma aranha encavalitada numa teia.
Estendida
no chão, Dora ria-se das diabruras dos filhos. E rebolava com eles,
gritando todos, até darem descanso aos pulmões, de bocas
escancaradas, resfolegando, enquanto olhavam as paredes encardidas da
casa, os tectos húmidos, as loiças fedorentas, os móveis torcidos
e empenados das lutas que travavam para imitar as que o pai tinha com
Noé. E para ali ficavam todos amontoados de canseira, como bezerros
no matadouro.
Nessas
ocasiões, Júlio encontrava-se na taberna a jogar, por entre a luz
opaca dos fumos e evaporações de aguardente. Quando chegasse a
casa, apodrecido de álcool, desataria à pancada na mulher, ateando
de novo a gritaria, algazarra, choros e roncos entre os filhos
gigantes. Júlio agredia Dora com todas as forças e com tudo o que
lhe aparecia à mão, alegando que ela nada fazia pela manutenção
do lar em que viviam. Mas quanto mais bofetadas e pontapés
apanhasse, menos Dora estava disposta a cumprir a vontade do marido.
O seu entendimento das razões que enfureciam Júlio tinha entrado,
definitivamente, num processo de degradação incontrolável.
Apesar
dos pedidos de socorro dos filhos de Dora, a vizinhança não se
atrevia a pôr o pé dentro da casa do gigante embravecido. Júlio
ameaçava desfazer tudo e todos numa fueirada de torresmos. O gigante
considerava-se livre de desancar Dora dos pés à cabeça,
transformando-a, muitas vezes, numa enorme ferida ensanguentada e
enegrecida.
Dora
não se defendia nem esperneava. Apenas chorava ácido sobre o chão,
ao som das pancadas de Júlio, de cuja boca poucas ou nenhumas
palavras alguma vez tinham saído. A linguagem do gigante resumia-se
quase sempre a crispações do rosto e do olhar, em graus diferentes,
conforme as circunstâncias, E a ira que ele espalhava parecia
suficiente para arrasar uma cidade inteira.
A
face de Júlio revelava, nessas alturas, uma dureza singular, como se
alguém tivesse estampado nela um escudo dos antigos cavaleiros. Aos
fins de tarde, eram mais visíveis as suas têmporas carregadas de
cicatrizes, fruto de uma longa série de brigas em que sempre andara
metido. No conjunto, o seu rosto fazia lembrar um pergaminho exposto
à corrosão das eras.
No
fundo, era o silêncio e a cara de pedra o que convinha a Júlio na
luta pelo trono de o homem mais forte da cidade. Sabendo-se que os
que muito tagarelam pouco lucram, o mutismo era uma forma de Júlio
ganhar dividendos.
De
todos os gigantes da cidade, ele era o menos encorpado, praticamente
um lingrinhas em comparação com o impressionante físico que Noé,
por exemplo, ostentava. Por isso, também, era enorme o interesse que
as brigas entre os dois proporcionavam, tal a disparidade de corpos
em luta, embora como já se disse, ambos fossem gigantes com todas as
letras, se acaso postos ao lado de um homem vulgar.
III
Tendo
chegado à cidade sem dar contas a ninguém, Noé depressa arranjou
casa e montou vida. Os contornos da sua actividade não eram claros.
À semelhança de quase todos os gigantes, tornou-se frequentador de
tabernas desde a primeira hora. Soube-se que lhe morrera a mãe, de
quem herdara alguns haveres, e que vivia só.
Mais
tarde, quando se deparou com dificuldades financeiras, já havia
ganho prestígio de sobra para se dar ao luxo de sobreviver sem
aflições de maior.
Noé
nunca precisou de dar grandes voltas ao miolo para garantir uma vida
estável. Com ameaças veladas pelo negrume das noites, altura em que
os grandes problemas mais facilmente encontram soluções, ele deu
sempre conta dos trabalhos que lhe apareceram. E, pelos vistos, nunca
lhe faltou dinheiro para o jogo e para os copos.
Por ser falador e
gostar de algazarra, estava continuamente rodeado de outros gigantes
que, ora o espicaçavam e atiçavam o orgulho contra o grande rival,
ora se dedicavam a ouvi-lo com submissão.
Noé
não prescindia de admiradores, dizendo com frequência, alto e bom
som, que por um amigo era capaz de dar tudo e que, neste mundo, só
nutria verdadeiramente ódio por uma pessoa.
Nesses
momentos, caso Júlio estivesse por ali, os outros gigantes
fingiam-se distraídos. Mas se Júlio andava longe, incitavam Noé a
provar que era o maior. Este costumava responder que estava
exactamente à espera de Júlio para um jogo de damas, só que, pelos
vistos, o rival tinha medo de aparecer.
Os
presentes desatavam a rir com a sua apregoada coragem, porque sabiam
que Noé evitava sempre o confronto directo com Júlio. Esperava que
o grande inimigo se embebedasse por completo e desaparecesse da
taberna. Só então se sentava à mesa para jogar.
Noé
não perdia tempo e punha-se de imediato a cuspir ameaças ao
adversário que lhe surgia pela frente.
Começava
por colocar o dedo mindinho sobre a mesa de jogo e esse gesto
insignificante era como o de um míssil prestes a explodir. Depois,
pegava nas suas partes íntimas, puxava-as em concha para a frente e
sentava-se, deixando entre as pernas a saliência de uma abóbora.
Por
falar excessivamente, Noé dizia-se o melhor em tudo com uma
acentuada falta de pudor. Jurava pelas almas do Purgatório que ainda
não desfizera Júlio de um só golpe por ter pena dele e da manada
de filhos que tinha à sua conta, além de que Dora nem era má
pessoa...
De
qualquer maneira, dizia Noé, o homem mais forte da cidade
necessitava de antagonista à altura. Júlio, embora mais pequeno em
tamanho, era o único capaz de lhe fazer frente com dignidade.
Portanto, o seu rival era o segundo em força. Ele, Noé, o primeiro.
Para quê desfazer, então, com um murro de elefante o homem que
servia para demonstrar a sua indiscutível superioridade sobre todos
os outros?
Para
afastar dúvidas quanto ao seu domínio no campo da força física,
ele punha-se a palpar as braguilhas dos presentes, entusiasmando a
assistência que o apoiava e aplaudia. Depois, pedia mais uma cerveja
e sugeria a todos os gigantes que contribuíssem com a sua urina para
o copo a transbordar de espumas. E dizia ser capaz de engolir aquilo
(tal como engoliria o próprio Júlio, se fosse preciso), conforme
veriam. Se alguém quisesse apostar que avançasse.
Os
gigantes já conheciam o ritual, e apostavam, só para ver Noé
cumprir o prometido e despejar vários copos de urina pela garganta
ressequida.
Era
voz corrente que as teorias ruidosas de Noé e o seu feitio
intempestivo seriam efeito de um desmedido ressentimento que ele
guardava contra o silêncio de Júlio. Por isso, vivia enredado nas
malhas dos olhares venenosos que o adversário lhe lançava, nunca se
dando ao luxo de lhe dirigir palavra, a fim de não reconhecer
qualquer mérito.
Então,
Noé ripostava contra os gigantes menos poderosos que o rodeavam.
Para não dar parte de fraco, evitava falar directamente com Júlio
porque sabia que as suas conversas não obteriam resposta. Não lhe
agradava cair no ridículo ao confrontar-se com a mudez completa. Por
isso, caía num rodopio de sentimentos contraditórios que o
projectavam para a frente das palavras. E embora soubesse que não
falava verdade mantinha a casmurrice de afirmar a sua força
indomável e coragem imbatível.
Mas
era só na ausência de Júlio que ele se dizia o mais forte de todos
os gigantes. Se o grande rival estava presente, Noé encurralava-se
num tropel de frases vagas e propositadamente ininteligíveis, como
se a sua tão apregoada bravura, de súbito, tivesse encontrado um
buraco no chão da taberna. Depois, escapava-se para casa e
deixava-se cair na cama, sob a qual tinha sempre uma caixa de
cervejas, que esvaziava em poucas horas. Dormindo e bebendo,
recobrava forças para o dia seguinte. Nunca se sabia quando chegava
a ocasião do confronto decisivo com o temido rival.
Cada
dia que passava era menos um na contabilidade da guerra, ora
desenfreada ora escondida, que Júlio e Noé travavam um contra o
outro, sem que os motivos de um ódio tão desmedido viessem ao de
cima, a não ser os já conhecidos de uma aversão implacável à
primeira vista, que sempre os desunira e que deixara marcas visíveis
em ambas as partes.
Noé,
de orgulho esquartejado, não aguentava a aceleração das palavras
que lhe saíam da boca, enquanto Júlio engolia as vinganças em
silêncio. Ambos urdiam, deste modo, a sua teia de rumores subtis em
que esperavam ver o adversário tropeçar.
IV
Uma
vez, ao acordar, Noé apercebeu-se de que tivera um sonho em que a
mãe lhe aparecera e falara ao coração. Ela começara por
repreendê-lo pela sua falta de coragem na presença de Júlio. A seu
ver, não havia razões para isso, porque Noé era, sem sombra de
dúvida, o homem mais forte da cidade. Em comparação com o filho,
Júlio era um lingrinhas, um velho, um escanzelado.
Noé
não tinha nada que envergonhar a família e devia provar ao grande
rival que não o temia sob nenhuma forma ou circunstância.
De
início, Noé não queria acreditar no que ouvia. Mas a mãe foi
peremptória e disse-lhe que, passados alguns dias, ele receberia uma
carta pelo correio a confirmar tudo quanto agora lhe era comunicado.
Ela estava só a fazer umas economias para o selo, que lá naquelas
altíssimas paragens era muito dispendioso. As palavras da sua
missiva seriam escritas a ouro e Noé devia recorrer a elas para
atestar a veracidade do seu sonho perante todos os gigantes.
De
uma vez por todas, Noé tinha que aproveitar a força que lhe chegava
do outro mundo através das boas graças da mãe. Com a ajuda da
carta que ia receber, o seu ascendente sobre Júlio ficaria mais do
que demonstrado.
Ele
tinha a certeza de que o recado da mãe tivera aprovação do
Criador, pois ela estava no Céu, onde as alminhas santas não
comunicavam com os filhos na Terra sem a devida autorização de
Deus. Neste caso, era óbvio que o Senhor do Universo o considerava o
homem mais forte da cidade. E, se calhar, ainda havia de fazê-lo
soberano do planeta, provavelmente depois de Júlio ter sucumbido sob
a raiva dos seus punhos.
Noé
levantou-se a correr e saiu de casa depois de uns apertões na porta,
porque o seu corpo inchara exageradamente com o sonho que acabara de
ter. Competia-lhe, agora, na prática, honrar os elogios que a mãe
lhe fizera e mostrar a todos os outros que era um gigante investido
de poderes divinos.
Foi
com esta força sem limites que o colosso entrou na primeira taberna
que encontrou, atravessando fumos e escarros de toda a espécie, para
dar de caras com uma quantidade de gigantes que se amontoavam em
redor de uma mesa na qual Júlio jogava dominó.
Após
a entrada de Noé, houve logo um repentino abrandamento de vozeirões,
mas Júlio nem moveu a aba mais frágil das suas orelhas de couve.
Alguns
gigantes afastaram-se para dar passagem a Noé, que tinha amolgado a
banda direita da testa no esforço precipitado de atravessar a
minúscula porta da taberna e que vinha roncando por causa dessa dor
na cornadura.
A
fúria de que vinha animado era tal que libertou a coragem que até
aí nunca tivera e lançou no ar a frase que desde há muito tinha
atravessada na garganta. As suas palavras saltaram no ar pesado como
facas incandescentes acabadas de sair da goela de um vulcão. Noé
disse, com todas as letras, quase submergindo os presentes, que, a
partir daquele dia – fosse diante de quem fosse – ele era o homem
mais forte da cidade! Se alguém tivesse dúvidas que telefonasse
para o outro mundo, onde a sua própria mãe se prestaria a
esclarecer o que fosse necessário.
Temendo
a reacção de Júlio, os gigantes entreolharam-se numa inquietação
que inundou a taberna até aos ossos. Os copos de cerveja
detiveram-se, subitamente, na viagem rotineira para os lábios
gretados, à espera que Júlio se engalfinhasse em Noé, recorrendo a
golpes de rins nunca vistos e estrangulamentos com garras de abutres
acostumados às mais incalculáveis e surpreendentes façanhas.
Todavia,
depois da afirmação de Noé ter atroado os cantos da taberna, não
restando dúvidas de que aquela era a maior provocação que alguma
vez um dos gigantes tinha feito ao outro, Júlio não moveu uma
sobrancelha. Nem parou de jogar. Manteve-se calmo, indiferente, como
se a frase de Noé não passasse de uma das maiores banalidades que
ouvira ao longo da vida.
A
tensão era tal que, na taberna, até as moscas deixaram de bater as
asas. O próprio Noé parecia hesitar acerca do significado do que
dissera. Como se lhe faltasse ali a mãe para o reanimar. Ou
necessitasse de um sopro divino para ascender rapidamente aos céus,
antes que Júlio tivesse tempo de fazer contas ao que ouvira e
reagisse.
Mas
o jogo de dominó chegou ao fim sem perturbações. Júlio
levantou-se da mesa, ajustou as calças amarrotadas na cintura e
dirigiu-se calmamente para a porta de saída, passando a escassos
milímetros de distância da barriga de Noé.
Sentiu-se
um arrepio percorrer toda a taberna nesse momento, porque os dois
valentões nunca tinham sido vistos tão próximos um do outro sem se
envolverem à pancadaria. Enquanto os segundos não passavam, o
espaço vago dentro do estabelecimento era nenhum. Porque se dera
logo uma grande afluência de gigantes ao local, gigantes de todas as
idades e feitios, como se a provocação de Noé tivesse sido
previamente anunciada à população muito antes ainda de o próprio
ter decidido fazê-la.
Apesar
de nunca se poder saber ao certo o que terá pensado Júlio nesse
momento crucial, a única alternativa que se lhe deparou, depois de a
taberna se ter enchido de curiosos, foi passar a uma unha de
distância da barriga de Noé.
Os
dois inimigos trocaram um olhar rápido, intenso, escaldante,
avaliando as consequências profundas daquele encontro estranhamente
tão comedido.
Recuperado
da hesitação que o abalou logo depois de ter dito a toda a gente
que era o homem mais forte da cidade, Noé depressa percebeu que não
podia recuar. Por maior perigo que corresse, mais valia enfrentar o
adversário.
Assim,
olhou a menor estatura de Júlio como a um mísero rato que passa a
tremer diante de um tigre. E não foi capaz de adivinhar o que
estaria Júlio a congeminar durante os breves segundos que demorou a
levantar-se e abandonar a mesa de jogo, avançando para a porta de
saída com uma calma e uma indiferença que faziam prever o pior.
Júlio
não desiludiu os inúmeros admiradores que tinha na cidade.
Apercebendo-se da súbita perplexidade de Noé, deteve-se por uns
instantes, inclinou o tronco para a frente, estendeu a perna esquerda
para a retaguarda e disparou um peido com toda a violência na
direcção do nariz do opositor, deixando em sobressalto os gigantes
que enchiam a taberna até à porta da rua.
Noé
ficou sem capacidade de resposta. Embasbacado, não sabia se havia de
rir ou chorar, se havia de ficar onde estava ou se havia de desatar a
perseguir Júlio pelas ruas da cidade.
Mas
enquanto Noé hesitava sobre o que fazer perante a humilhação
pública a que fora submetido, Júlio avançava pela rua, aos tombos,
arrotando álcool à esquerda e à direita, tendo mesmo que
agarrar-se de vez em quando às saliências dos beirais para não
cair estatelado no chão. Parecia um vapor com rombo no casco
deslizando sem destino sobre o alcatrão. E por detrás das cortinas,
as gigantas seguiam-no com olhos de coruja, desfiando credos pela
boca.
V
Ao
sair da taberna, Júlio não foi para a oficina. A sua alma
abarrotava de navios enterrados em limos e caixas antigas por abrir.
Era em casa que ele gostava de enfrentar os ventos e aglomerados de
nuvens que ameaçavam a sua vida permanentemente.
Dora
aprendera a não reagir aos humores tresmalhados do marido. Mas os
filhos costumavam gritar como porcos feridos quando o pai desatava a
bater na mãe, parecendo querer destruir tudo à sua volta. E só se
calavam quando Júlio dava descanso à sua fúria contra a mulher e
contra o mundo.
Naquele
dia, ao entrar em casa, Júlio viu os pequenos gigantes nas arrelias
e travessuras do costume. Sentada a um canto, Dora entretinha-se a
fazer balões com uma pastilha elástica que encontrara sob o tampo
de uma mesa.
Quando
viu o marido entrar a porta, Dora perguntou-lhe se já havia decidido
pagar a conta da água, pois há meses que não valia a pena abrir as
torneiras. Os serviços municipalizados tinham perdido a paciência.
Júlio
evitava pagar despesas correntes porque, no seu entender, os
problemas resolviam-se por si mesmos. E se não se resolvessem, a
Câmara daria o desmazelo por esquecido.
Assim,
não custava imaginar os cheiros que cresciam na casa de Dora ao
longo do tempo. Eram cheiros tão grandes e densos como os filhos de
Júlio, que atravessavam a casa em todas as direcções, enchendo-a
de putrefacções.
Júlio
não respondeu à pergunta da mulher sobre a conta da água que
estava em dívida. E Dora comentou o seu estado de bebedeira colossal
dizendo que era um caso sem solução.
Ele
reagiu como se apenas estivesse à espera de ouvir o que ouviu. Deu
um salto de fera sobre a mulher, desatando a agredi-la com bofetadas
e socos, enquanto o sangue lhe saía em esguichos pelas narinas.
Ao
verem a fúria desalmada com que Júlio atacava Dora, os filhos
puseram-se a correr para a vizinhança a pedir ajuda.
Veio
muita gente espreitar às janelas e amontoar-se à porta da casa onde
se desenrolava a briga, mas ninguém fez nada, ninguém mugiu, só à
espera de ver Dora definhar sob a raiva enlouquecida que Júlio
carregava no coração de breu.
O
agressor sentou-se em cima da mulher e começou a apertar-lhe a
garganta, fazendo-lhe andar os olhos em moinho dentro das órbitas.
E, de súbito, ela recordou-se do tempo em que ambos se tinham
namoriscado à sombra dos campos de milho com o chilreio dos pássaros
a engalanar-lhes a aventura dos beijos. Os pais de Dora, porém,
nunca haviam concordado com aquele relacionamento. Muito menos
queriam ouvir falar em matrimónio. Por isso, um dia, Júlio
encheu-se de brios e raptou aquela que havia de ser sua esposa.
Júlio
e Dora fizeram amor pela primeira vez na arrecadação de um prédio
em obras, onde se esconderam da perseguição movida pelos pais dela.
O sentimento que desde então os uniu ficou eternamente por resolver.
E assentou raízes num ciúme violento em permanente risco de
desabar.
Com
o tempo, Júlio ganhou o hábito de maltratar Dora. Fazia-o
geralmente com a fivela do cinto. E não se esquecia de acentuar que,
deste modo, as suas marcas ficavam devidamente registadas,
contribuindo para que Dora tivesse sempre presente que Júlio era (e
continuaria a ser) o único homem da sua vida.
Ranhosos
e barrigudos, os filhos de Dora aperceberam-se de que o pai corria o
risco de a matar, apertando-lhe as goelas. E então puseram-se a
rezar a todos os santos, pedindo que Júlio desistisse das suas
intenções assassinas.
O
monstro, porém, não ligava às preces dos filhos. Espetou as unhas
sujas e mal cortadas no pescoço de Dora, desatou aos gritos como um
rochedo no fim do mar e fez explodir a sua grande ofensa contra todos
os gigantes, contra a própria existência, contra os torvelinhos
infindáveis da mente. Júlio dizia, para quem o quisesse ouvir, de
uma vez por todas, e pedia que espalhassem a notícia aos quatro
ventos, que ele era o homem mais forte da cidade, o homem mais forte
do mundo!
A
seguir, libertou o pescoço de Dora, que ficou de cara à banda, sem
ânimo, tão roxa que parecia morta, extenuada pelas vibrações
incontroláveis da cólera.
Júlio
levantou-se, e só o facto de o ter feito, olhando em volta com as
órbitas desvairadas, provocou a fuga de todos os gigantes, que se
tinham apinhado, em cachos, junto à sua casa, contra a porta e
janelas. Desapareceram como abelhas perseguidas pelo fumo.
Mas
os filhos mais crescidos e valentes de Júlio decidiram que já era
altura de perder o medo do pai, que devia ser castigado pela agressão
a Dora. Todos juntos, talvez conseguissem pregar-lhe um susto.
Organizaram-se
e combinaram uma estratégia adequada às circunstâncias. Nada de
fraquezas, nada de hesitações, sempre em frente, olhares firmes,
para o apanhar de surpresa.
Aproximaram-se
da casa onde viviam e de onde tinham acabado de fugir, avançando
sobre Júlio antes que este tivesse tempo de perceber o que se estava
a passar.
Como
ursos esfomeados e sujos, rodearam o pai, que começou a ver tudo
cinzento à sua volta, tudo azul-ferrete, tudo castanho escuro. E
naquele preciso instante veio-lhe à memória a sombra da esquina
onde tinha sido abandonado em criança sem dó nem piedade.
Abandonado para sempre. E nunca mais soube o que tinha ficado para
trás na sua vida. Era esse negrume que o indignava.
Numa
revolta sem precedentes na família de Dora, os gigantes caíram em
massa sobre o pai, como uma dúzia de elefantes. Agarraram-no pelo
pescoço, cabelos, pernas, braços. Rebolaram todos pelo chão e
roncaram de violência, fazendo estremecer as casas da vizinhança.
Júlio
desapareceu sob a montanha de carnes que os filhos formaram para o
derrubar. E, a certa altura, foi como se o soalho o tivesse tragado.
O que não era impossível, tal a convicção e destemor com que os
jovens gigantes enfrentaram o progenitor.
Aflita,
Dora foi ver o que se passava. Mas acabou por cair na confusão de
gritos, socos, berros esganiçados, pedidos de socorro, cabeçadas,
grunhidos.
Até
o dia terminar, os gigantes esmurraram Júlio com todas as suas
forças e desejos de vingança. Mas, depois, com o cansaço, os risos
já se confundiam com as ameaças e lágrimas. Já ninguém sabia em
quem bater, nem porque bater.
Houve
ainda uns guinchos e uns choros por parte dos gigantes mais pequenos,
e alguns espernearam até ser noite cerrada, mas, por fim, saturados
da briga, as forças amoleceram e, aos poucos, os gigantes
entregaram-se ao sono fundo, como baleias negras estiradas na praia.
Júlio
foi dos primeiros a adormecer. Nunca acreditou que os filhos
estivessem a sério quando o atacaram. Ficou com um olho negro e
levou com uma cadeira na cabeça, mas pensou que aquela agitação
fazia parte da bebedeira.
Durante
a noite, os horizontes confundiam-se. À medida que as horas
passavam, o calor e o cheiro atraíam os corpos. Enquanto dormiam, os
gigantes abraçavam-se, espancavam-se, roncavam, saltavam para cima
uns dos outros, refilavam com quem os importunava. Alguns
seduziam-se. Amavam-se numa liberdade de ondulações íntimas,
murmúrios, gemidos. No dia seguinte, ninguém se lembrava de nada.
VI
Bastante
tempo depois de Júlio ter deixado a taberna, Noé continuava rodeado
de gigantes, que se entretinham a beber, ruidosamente, como se
acabados de chegar do deserto, sequiosos de lavarem as almas.
Uns
diziam que Júlio tinha fugido com medo, argumentando que o peido
fora um ardil para contornar a superioridade de Noé.
A
própria sova que Júlio apanhara dos filhos falava por si. Era cada
vez mais evidente que o seu tempo já tinha passado.
Mas
nem todos eram da mesma opinião. Havia quem defendesse que Júlio
continuava a ser o maior e que naquele dia se tinha limitado a não
ligar patavina ao rival, tendo-o envergonhado e desprezado com um
simples traque. Noé tivera a coragem de dizer diante de todos que
era o homem mais forte da cidade, mas nem por isso as coisas tinham
mudado de feição, nem por isso as horas tinham deixado de passar.
Quanto
à sova que apanhara dos filhos, muitos defendiam que Júlio apenas
não os quisera magoar, fingindo-se derrotado. Daquela forma, ia-os
preparando para o futuro, animando-os, incentivando-os. Outros eram
de opinião que tudo não passara de uma brincadeira.
Noé,
por seu lado, vangloriava-se do facto de ter anunciado diante de
todos, incluindo diante de Júlio, que ele próprio era o homem mais
forte da cidade. Dizia que ficara provado à evidência que o
adversário não tivera cara de o enfrentar. E babava-se, com a
espuma correndo em ondas de cerveja pela camisa alagada.
Todavia,
logo que descortinou uma oportunidade, deixou os gigantes a olhar uns
para os outros na taberna e foi direito para casa, onde se fechou a
sete trancas.
As
suas dúvidas aumentaram, dando origem às mais diversas hesitações
interiores. Por mais destravado de boca que fosse um gigante, no
íntimo havia sempre uma consciência dos limites.
Mergulhado
em confusão, Noé achou que talvez fosse boa ideia escrever à mãe,
que estava no Céu, rodeada de anjos e músicas celestiais enchendo
de luzes a eternidade.
Começou
por apresentar um rol de queixas sobre Júlio, que lhe dera um peido
nas ventas depois de Noé o ter desafiado dizendo alto e bom som que
ele mesmo era o homem mais forte da cidade.
Era,
por isso, urgente que a mãe lhe enviasse a tal carta prometida,
escrita a letras de ouro, a comprovar a sua superioridade sobre tudo
e todos. E de preferência que Deus não se esquecesse de pôr o
carimbo da sua santidade no fino papel, para que todos acreditassem
na leitura.
Contudo,
Noé pensou que talvez não valesse a pena continuar a escrever à
mãe porque a carta dela poderia já estar de viagem num envelope
rumo à sua caixa de correio.
Então,
rasgou o que escrevera com os dentes de lobo nas gengivas inflamadas,
fazendo lembrar o desespero de um escritor enervado que teme não
encontrar a fórmula exacta para a comunicação com os leitores.
A
seguir, decidiu passar pelas brasas, procurando entrar em contacto
com a mãe através dos sonhos, uma forma rápida e eficiente para
suavizar as suas apoquentações.
Em
poucos segundos, deixou cair o seu peso de muitas centenas de quilos
sobre a cama, que não aguentou o embate, abrindo as pernas como um
quadrúpede e desconjuntando-se,
Mas
Noé não ligou ao desabamento da cama e de olhos fechados deixou-se
ir em busca do ponto branco na imensa esfera negra do vazio onde a
mãe havia de estar à sua espera.
Porém,
nada viu, nada encontrou, a não ser a sombra perseguidora de Júlio,
que o amarrava de pés e mãos e o despejava num poço sem piedade.
Era uma queda sem chão, com Noé interminavelmente acossado pela
vertigem de luzes paralelas. Ele bem procurava agarrar-se a algo, mas
a morte era escorregadia e lisa, sem ramos nem bicos de rocha onde
alguém se pudesse agarrar no último minuto do desespero. Noé
gritava que não queria morrer assim de repente transformado num
balão vazio. Pedia que o salvassem, que o tirassem daquele
precipício e então acordava encharcado na sua própria urina com
cheiro a podridões de laboratório.
Incapaz
de resistir ao pesadelo, o gigante acabava sempre por cair nas voltas
da escuridão. E dava invariavelmente de caras com um Júlio
sorridente que o convidava a uma roleta russa, só que o tambor era
completamente carregado de balas quando chegava a sua vez de
disparar. Noé transpirava como uma besta desalmada e rezava
avé-marias umas atrás das outras no momento em que apontava a arma
com os chumbos prontos a entrar-lhe pela banda da cabeça
desguarnecida.
Os
outros gigantes riam da sua fraqueza e insistiam que ele já estava
morto há muito tempo, por isso o contacto que tivera com a mãe não
fora um sonho, mas sim a realidade palpável de que se fazia o mundo
dos cadáveres. E acrescentavam que, entretanto, Júlio fora coroado
rei com todas as honras.
Em
completo desatino, Noé puxava o gatilho e dava um pulo na cama,
sendo de imediato assaltado por esguichos de luz que o sufocavam.
Depois, as ratazanas cercavam-no e preparavam-se para o devorar. Ele
debatia-se, esperneava, defendia-se, até perceber que estava rodeado
de alucinações com centopeias cósmicas a pontapeá-lo na lama do
medo.
A
ver se sossegava, Noé levantou-se da cama, voltou à taberna e pediu
a vários gigantes que viessem a sua casa.
De
início, ninguém queria ir, e chegaram a perguntar-lhe se ele metera
alguma bruxa entre os lençóis. Mas ele tanto insistiu que os
gigantes não resistiram e acabaram por lhe fazer a vontade.
Ao
chegarem, tinham garrafas abertas sobre as mesas e uma voz pegajosa
de mulher em altas cantorias na cassete de um gravador.
Depois
dos primeiros momentos, os gigantes foram-se adaptando,
entusiasmando, entregando, e não muito tempo depois alguns já caíam
de bêbados sobre o chão, adormecendo em roncos profundos. Outros
faziam pares, dançando conforme as amizades e bamboleando-se
desajeitadamente.
A
tarde corria morna sem expectativas, sendo apenas interrompida pelos
estrondos das cabeçadas que os gigantes davam uns nos outros, nas
paredes, nos móveis, no soalho, e que pareciam explosões próprias
do batimento agressivo da música. Quando a cassete terminava, havia
sempre alguém que a rebobinava. E tudo se repetia ao som dos passos
desencontrados. Alguns não escondiam as mãos enlaçadas entre
gargalhadas estridentes e divertidas que vinham alegrar o movimento
comum da vertigem em que se haviam afundado.
Passaram
a tarde inteira em casa de Noé, remando no seu barco que navegava
sempre pelo mesmo sítio do mundo. Consolavam-se nos braços uns dos
outros, como crianças à beira de amores primordiais. Até que a
bebida os derrubasse a todos com as suas mandíbulas enevoadas de
doçura.
VII
Júlio
esteve três dias sem aparecer na taberna. Exactamente o tempo que
durou a cozedura de bebedeiras em casa de Noé.
O
gigante andou metido entre as suas bugigangas, tirando de um lado,
metendo no outro, desfiando cabos, desbarbando vassouras, a fim de
construir uma corda à prova da maior resistência. Dia após dia, o
rolo ia-se amontoando pacientemente no espaço vago entre as
quinquilharias.
Fornecido
de vários garrafões de cinco litros de aguardente mais pura, não
lhe faltou com que distrair as ferramentas do cérebro, à espera da
hora que ele sabia a mais acertada para fazer valer os seus trunfos.
O
seu plano devia ser executado no dia da chegada dos camiões que
traziam os alimentos necessários à sobrevivência dos gigantes.
Eram às dezenas, descarregando toneladas de embalagens e pacotes dos
feitios mais diversos. Mas em pouco mais de vinte e quatro horas
desaparecia tudo, por vezes até dando a ideia de que nem as
populações inteiras de Paris ou Roma seriam capazes de devorar
tanta comida. Assim, os gigantes passavam fome durante a maior parte
do mês. As bebedeiras eram a sua salvação.
Júlio
não se lembrava do dia certo em que chegavam os camiões. Depois do
álcool que emborcara, estranho seria que tivesse a memória afinada.
Por isso, ocupou o tempo trabalhando em cordas e cabos de noite e de
dia, para que o seu esquema não corresse o risco de falhar. O pior
que lhe podia acontecer era fracassar diante de Noé.
Ao
fim de uma quantidade de dias, ouviu finalmente o barulho dos motores
em cadeia que faziam tremer a terra num abalo sísmico prolongado.
Saiu para a rua e presenciou vários gigantes com os ouvidos colados
ao chão tentando confirmar a aproximação dos veículos.
Sem
perder tempo, Júlio dirigiu-se para a rua principal, onde se
misturou com a multidão de gigantes que vinham receber o cortejo de
veículos.
Depois
de as muitas centenas de caixas e sacos terem sido descarregados e
remetidos para o seu destino, Júlio avançou sorrateiramente e foi
falar com os motoristas.
A
conversa não demorou. Porque nenhum dos interpelados se atreveria a
negar um pedido a Júlio. Viu-se-lhes as caras resignadas e
percebeu-se logo que alguma coisa estaria para acontecer.
Júlio
deu um salto à oficina e regressou minutos depois, arrastando o peso
dos rolos de corda que tinha fabricado durante os dias em que ninguém
lhe pusera a vista em cima.
Atrás
de Júlio vinham gigantes, gingantões e gigantinhos que lhe
adivinhavam os intentos. Lia-se nos seus olhos inquietos o
pressentimento de que se aproximava uma das ocasiões que haveria de
marcar a história da cidade.
As
gigantas espiavam o acontecimento por detrás das minúsculas janelas
que lhes serviam de esconderijo. E a agitação subia de tom à
medida que os curiosos aumentavam de número, tecendo especulações
sobre as forças de Júlio. Havia quem garantisse que já o vira
derrubar duas chaminés sem a ajuda de qualquer ferramenta, só ao
murro e ao pontapé.
Naquele
dia, porém, Júlio quis ir mais longe do que nunca.
E
pôs-se a desenrolar as cordas e cabos que trazia, unindo-os uns aos
outros, através de nós reforçados. Depois, prendeu um dos camiões
pelo eixo traseiro, a seguir outro, e outro, até aos seis.
Alguns
motoristas acercaram-se dele, na tentativa de o fazer mudar de
ideias, mas Júlio não estava disposto a recuar um milímetro após
todo o trabalho que tivera ao longo dos últimos dias.
Poucos
minutos mais tarde, apareceu Dora aos gritos, de xaile pelos ombros,
pedindo ao marido que não fizesse aquilo, que pensasse nos filhos
que tinha para sustentar, que se lembrasse das suas
responsabilidades.
Júlio
não deu ouvidos à mulher e repeliu-a com meia-dúzia de
cotoveladas. Mas logo a seguir vieram os filhos em cacho, numa
barulheira infernal, suplicando a Júlio que tivesse pena deles.
Os
gigantes que assistiam ao espectáculo não gostaram da intromissão
de Dora e dos filhos. E alguns mandaram-nos calar, sugerindo que nada
havia de acontecer a Júlio, que ele era forte bastante.
Dora
implorou compreensão aos gigantes que a rodeavam e ajoelhou-se ali
mesmo na rua, pedindo a Deus que lhe poupasse o marido.
Todavia,
Júlio não dava atenção ao que se passava à sua volta. Só se
preocupava em verificar se todos os camiões estavam bem amarrados,
para que o seu plano não fosse por água abaixo.
Quando
os passeios já se encontravam apinhados de gente que pretendia
assistir ao espectáculo, Júlio propôs aos camionistas que lhe
prendessem os pulsos nos extremos da corda. Aquela seria uma prova de
força nunca antes experimentada.
Júlio
foi amarrado como pediu, fazendo com que dezenas de gigantes se
encolhessem arrepiados.
Logo
a seguir, os motoristas tomaram os seus lugares aos volantes das
poderosas máquinas, enquanto alguns pareciam ainda não acreditar
que Júlio estivesse disposto a pôr a vida em risco de forma tão
arbitrária.
As
portas das cabinas fecharam-se à uma, com estrondo, e os motores
foram postos a roncar.
Júlio
encarava enfim a morte de frente, apesar da respeitável distância a
que se encontrava do primeiro camião. Parecia querer ganhar tempo
para medir as consequências dos seus actos até ao último pormenor.
Tudo porque Noé tinha decidido anunciar pela primeira vez em público
que era o homem mais forte da cidade.
Caso
Júlio conseguisse dominar as feras metálicas que tinha pela frente,
sustendo os efeitos da borracha queimada por entre uma infindável
cuspideira de gasóleo, Noé teria que passar a recorrer de forma
mais eficiente ao engenho da cabeça e dos músculos.
O
barulho dos motores aumentou subitamente e viram-se as rodas dos
camiões levantadas no ar a girar sobre os eixos. Nenhum dos veículos
avançou um milímetro. Porque Júlio os segurava com todas as suas
forças, envolto numa espessa nuvem de mau cheiro, combustível
queimado e fumos azulados. Tinha o rosto crispado, o corpo todo
retesado, os pés colados ao asfalto e os braços esticados pela
força dos camiões. Parecia uma âncora que navio algum era capaz de
arrancar ao fundo dos mares.
No
momento exacto em que, sincronizadamente, os seis camionistas meteram
a segunda velocidade nos seus veículos, Júlio aproveitou para
respirar através de um grito vulcânico que se elevou nos ares.
Nessa altura, muita gente duvidou da verdadeira resistência do
marido de Dora. E houve quem chegasse a pensar que Júlio tinha feito
um pacto com o demónio, ou, no mínimo, desencantara uma magia
qualquer para segurar a força brutal dos seis camiões.
Mas,
de repente, os fumos e vapores desapareceram. Júlio tinha-se posto a
soprar com todas as suas forças para não morrer asfixiado. Não
queria dar parte de fraco. Por isso, continuava de pulsos amarrados à
corda que segurava as máquinas enfurecidas. Mas ninguém tinha a
certeza de que ele conseguisse resistir.
Então,
a massa de gigantes decidiu tomar partido na contenda. Contra os
camionistas, que eram oriundos de outras paragens, e a favor de
Júlio, que era um dos seus e com quem conviviam todos os dias na
taberna. De resto, o marido de Dora merecia todo o apoio só pela
coragem que revelara ao desafiar o poder de seis camiões.
Começaram
a ouvir-se berros e gritos de incentivo a Júlio. Que aguentasse, só
mais um bocado, que estava quase ganho o desafio, que resistisse só
mais um minuto, que os motores haviam de gripar, que não os
envergonhasse a todos e tivesse calma...
E
a verdade é que as centenas de gigantes que se tinham juntado na rua
principal da cidade não tinham motivos para estar desiludidos.
Porque Júlio segurava com mãos de ferro as rédeas da maquinaria
que se contorcia sob a rotação progressiva dos motores.
A
certa altura, os motoristas desistiram. As máquinas tinham sido
submetidas a um acentuado sobreaquecimento e eles não podiam correr
o risco de ficar sem transporte para os dias seguintes. Notou-se
mesmo que alguns pneus, por pouco, não derreteram.
E
foi o próprio Júlio que, descontente com a demonstração de força
que acabara de dar, e uma vez desamarrado, acometido por um vendaval
de fúrias sobre as quais já não tinha controlo, se atirou
descomandando contra os veículos, virando-os à força de braços,
torcendo-lhes os eixos, amolgando-lhes a chaparia com cabeçadas de
touro picado nos olhos. Tudo para gáudio dos gigantes que assistiam,
eufóricos à prova de força mais descomunal que alguma vez se vira
na cidade. E para desespero dos motoristas que se puseram em fuga
ante o espectáculo feroz de tamanha destruição.
VIII
Depois
do inesperado desmantelamento dos camiões, as pessoas deitaram a
correr para vários lados, receando que Júlio estivesse na
disposição de acabar ali mesmo com as vidas de toda a gente. Era
uma espécie de fuga para o fim do mundo. Os gigantes desapareciam
precipitadamente pelas portas das tabernas e janelas das casas,
esgueirando-se dos olhares desvairados de Júlio.
Em
poucos minutos, a rua ficou deserta. Todos os gigantes tinham-se
resguardado no sítio mais seguro e observavam os passos seguintes de
Júlio, agora, através das frinchas, por detrás dos reflexos das
vidraças, por entre a agitação mal disfarçada das cortinas.
Mas
Júlio limitou-se a fazer o seu percurso de sempre. Seguiu na
direcção da taberna. E até houve quem dissesse que nesse momento a
morte se escondera atrás de uma árvore, pensando que o monstro
vinha resolver contas com ela, e se esgueirou habilidosamente por uma
corrente de ar fresco que passava.
O
marido de Dora entrou na taberna depois de ter desfechado um coice
feroz na porta semifechada de medo.
Noé
estava sentado à mesa do dominó, com cara de quem não sabia de
nada, nem sequer ouvira falar dos camiões.
Os
gigantes que tinham procurado abrigo na taberna encolheram-se todos
para o canto mais afastado da cena principal, enquanto Júlio
progredia com a mão direita em forma de gancho directamente ao
pescoço de Noé, que nem teve tempo para um gaguejo, uma palavra
balbuciada, qualquer coisa que lhe servisse depois para apresentar
como desculpa caso a situação não lhe corresse de feição.
O
que fez, num último instante, foi levantar-se e tentar barrar o
caminho ao inimigo, pondo uma cadeira à frente do peito.
Só
que Júlio tinha exercitado os seus melhores reflexos na antevisão
daquele momento.
Sem
hesitar, deu um berro medonho, fazendo com que o adversário perdesse
a concentração por uns breves segundos. Logo a seguir, tentou
roubar-lhe a cadeira.
Mas
Noé recuperou o instinto nessa altura precisa e não deixou escapar
o escudo improvisado.
Logo
a seguir, os dois agarraram-se um ao outro no meio de um grande
berreiro, entre socos e pontapés, fazendo ir a cadeira pelos ares.
Abraçaram-se
de raiva como dois amantes inseparáveis. Rebolaram pelo chão,
desabaram por cima das mesas, bateram contra as paredes, espatifaram
o balcão, estouraram prateleiras.
A
dado momento, Júlio conseguiu agarrar Noé conforme mandam as regras
das lutas sem árbitro. Pegou em cheio na abóbora que o rival tinha
entre as pernas e, elevando-o ao alto, fê-lo rodar como uma
ventoinha tropical, para incredulidade dos gigantes que se tinham
acautelado na sombra da taberna.
Apesar
da vertigem, Noé prendeu as mãos ao umbral da porta e acertou com o
pé nos queixos de Júlio, que tombou contra o cimento do chão.
Animado
com a proeza, Noé deixou-se cair sobre o corpo do oponente e espetou
as unhas na sua boca escancarada.
Quando
as retirou, toda a gente viu que esguichavam sangue.
Júlio
não teve tempo de verificar se lhe restava algum dente na boca.
Depois de uma volta rápida sobre si mesmo, prendeu Noé pelas
orelhas, fazendo-o guinchar como um porco de faca espetada na goela.
Toda
a cidade se arrepiou. Nem nos tempos da inquisição os gritos dos
torturados eram tão lancinantes.
A
seguir, Júlio recuperou a posição vertical e escarrou golfadas de
sangue para cima do inimigo. Este vociferou que o ia esmagar com os
pés, dentro de segundos, ali mesmo à vista de todos, garantindo que
não era por ele ter segurado e destruído seis camiões que seria o
homem mais forte da cidade.
A
ameaça deu origem a uma curta pausa na luta, que os dois contendores
aproveitaram para se olhar de alto a baixo, estudando-se mutuamente,
a fim de decidirem as tácticas que adoptariam nas próximas
investidas.
Júlio
não pestanejou, não mexeu um dedo, não buliu um músculo. Tinha o
queixo descaído e sangue a escorrer da boca. Estava hirto, imóvel,
petrificado. Uma aragem seria suficiente para o deitar abaixo do
trono que há poucos minutos atrás parecia estar perfeitamente ao
seu alcance.
Noé
percebeu que aquele era o momento mais indicado para fazer vergar o
inimigo. Só o ter-se-lhe deparado tão soberana ocasião levou-o a
pensar que estava perante um milagre. Havia ali dedo da mãe.
Intervenção divina, seguramente. O rival estava repentinamente
distraído, de costas para uma janela, com um ar de mísero cadáver
à espera de alguém caridoso que o depusesse na frieza da cova. Não
ameaçava, não falava, não respirava.
Incendiado
pelo sol que lhe entrava pelos olhos, Noé decidiu então avançar,
para resolver de uma vez por todas o seu assunto com o gigante que
nunca deixara de o humilhar.
Sem
pressas, levou atrás das costas o braço hercúleo de guindaste com
a mão fechada e atirou o soco de esfera demolidora contra o rosto
deformado que tinha à sua frente.
Júlio,
porém, acordou nesse preciso instante, reacendeu a chama que lhe
faltava. Por isso, não faltou quem pensasse que aquilo era
fingimento. Era truque para enganar o monstro que lhe pusera a boca
naquele lastimável estado.
Quando
a mão de Noé se encontrava a poucos milímetros do seu nariz
inchado, Júlio desviou-se de forma rápida e ágil. O opositor
perdeu o equilíbrio, precipitou-se na direcção da janela e acabou
por estilhaçar o braço na vidraça.
Com
um sentido de oportunidade escrupulosamente educado para ocasiões
melindrosas, Júlio não deu tempo a Noé para avaliar as
consequências da situação.
Puxou-o
a si pela cintura, agarrou o braço ferido e pôs-se a chupar-lhe o
sangue que corria desalmadamente pelas diversas torneiras da pele.
Com
a mão que lhe ficara livre, Noé muniu-se de um pedaço de vidro e
antes que Júlio o esvaziasse do sangue que lhe corria pelo corpo,
desatou a enterrar o gume cortante na face de Júlio. Espetou aqui,
aqui, aqui, sempre no mesmo sítio, para aumentar a profundidade do
golpe. Retalhou a pele em vários tamanhos e direcções. Rasgou a
fronte de um lado ao outro. Até que Júlio se viu perdido num poço
de sangue. Levou as mãos à cabeça, deu duas voltas e reparou que
nada via em redor.
Às
apalpadelas, foi em busca de socorro nas saias de Dora.
Ao
vê-lo chegar, aos tombos, marrando contra a porta estreita, sem
atinar com a entrada, a mulher exclamou que não lhe podiam ter feito
coisa melhor! Um dia, ele havia de tomar juízo.
Júlio
desabou no chão, mesmo à porta de casa, do lado de fora, e ficou
para ali a barafustar com ele próprio e com quem passava.
Noé
não teve melhor sorte. Logo que se viu livre de Júlio, foi invadido
por um grande frio e por uma palidez que só se compreendia numa
pessoa que tinha ficado sem um pingo de sangue nas veias. Assustado
com as caras perplexas dos gigantes que se aproximaram dele para
avaliar o seu estado, sentiu um dor fina no peito e desmaiou.
IX
Ao
acordar, ainda antes de saber se estava em casa, na taberna, ou no
Paraíso, Noé tratou de ir arranjar umas ervas que lhe curassem o
braço desfeito. Besuntou os cortes na mão e no antebraço e cuspiu
sobre os ferimentos porque sempre lhe tinham dito que não havia
melhor do que a saliva para aquelas situações.
Apetecia-lhe
gritar por causa das dores e do ardume, mas conteve-se. Um gigante
não se queixava das mazelas.
Olhou
em volta e teve a certeza de que estava seguro em casa.
Enrolou
o braço o melhor que soube nuns trapos de cozinha que ainda vinham
do tempo da mãe. Rasgou uma ponta em duas com os dentes e deu um nó
apertado para estrangular o sofrimento.
Andou
assim por um período de várias semanas, pois uma ferida mais
contundente teimava em não sarar.
Noé
passou a aproveitar-se do facto, dizendo a quem quisesse ouvi-lo que
aquele era o sinal da sua superioridade física, pois nenhum remédio
conseguia estancar a força do pus infectado no seu corpo.
E
quando o contrariavam, dava-se ao trabalho de desenfaixar o braço,
para expor aos olhos dos gigantes a inflamação do vurmo acumulado.
Espremia a ferida e fazia verter a matéria espessa em pingos bojudos
sobre o chão. Depois, sublinhava que Júlio ficara em muito pior
estado do que ele. E garantia que, se não o cegara com o pedaço de
vidro no centro das órbitas fora porque Júlio fugira a tempo para
debaixo das saias da mulher. Numa próxima vez, porém, ficassem
todos certos, o seu maior inimigo não havia de escapar com vida.
Noé
passava agora grande parte do tempo fora de casa, dando-se ares de
rei destemido. Estava sempre à espera de ver o rival surgir de
imprevisto na próxima esquina. Não se cansava de apregoar que
estava preparado para o enfrentar a qualquer momento. Assegurava que
não voltaria a deparar-se com uma situação idêntica à última,
em que Júlio o atacara à traição. Aprendera a conhecer o
adversário. Mesmo com o braço enfaixado, Noé insistia que Júlio
duraria poucos segundos nas suas mãos, caso voltasse a atacá-lo.
Com
receio de ser outra vez apanhado pelas costas, Noé raramente parava
muito tempo no mesmo sítio.
Tinha
sempre consigo uma caixa de cervejas, que ia bebendo aqui e ali, num
banco de jardim ou contra uma parede, na companhia de três ou quatro
gigantes que não hesitavam em fazer-lhe todas as vontades e que
deste modo se sentiam protegidos da raiva dos outros gigantes. Além
de tudo, sempre iam entornando umas cervejas.
Quando
estava com os amigos, Noé contava histórias de quando era mais novo
e de como as suas forças não tinham limite, ao ponto de por mais de
uma ocasião ter deitado em fuga regimentos inteiros de soldados. Com
duas ou três pauladas, ele afirmava haver saído vitorioso contra
dezenas de ladrões, vigaristas, provocadores, polícias de farda e à
paisana.
Ninguém
o aguentava, nesse tempo. E, por isso, ele tinha vindo parar àquela
cidade de gigantes piolhosos.
Segundo
dizia, chegara a derrubar árvores com uma só mão. E arrancara
também postes de luz uns a seguir aos outros, servindo-se depois
deles para enfrentar quem se lhe opunha, até as forças da ordem,
que há muito procuravam oportunidade para se verem livre dele.
Contava
também que em jovem saltava de árvore em árvore com uma ginástica
superior à de um símio habituado às andanças da selva. E que até
certa vez houve uma equipa de cineastas que o convidou para um filme
de aventuras. Ficara tudo combinado, o dia, a hora, o cachet,
só que no primeiro dia de trabalhos os operadores de câmara não
conseguiram captar as imagens das suas frenéticas habilidades em
frente aos cenários da paisagem, tendo-se gerado uma confusão de
fios enriçados com o realizador aos gritos sem saber o que fazer.
Noé
foi despedido da sua única experiência como actor, por culpa da
incompetência e saber dos técnicos de câmara, que se tinham
revelado incapazes de orientar as suas façanhas logo que fora dado o
sinal para a rodagem da manivela.
Ele
decidiu então mudar de ares. Estava farto de não encontrar gente ao
nível dos seus combates.
Um
dia ouviu falar de um tal Júlio, cuja fama atravessara estradas e
montes. Após a morte da mãe, decidiu abandonar tudo e pôr-se a
caminho da terra onde vivia o gigante cujas proezas eram conhecidas a
muitos quilómetros de distância.
A
partir de então, como era sabido de todos, fora um nunca mais acabar
de brigas e violência na cidade, que passou a depender quase só dos
humores daquelas duas feras sem conciliação possível.
Noé
e os amigos seguiam pela rua, em conversa animada, esvaziando
garrafas que atiravam para a berma do caminho, quando verificaram que
tinham ultrapassado os limites da zona urbana. Encontravam-se agora
sob o fresco de árvores imensas que se multiplicavam num verde de
sombras e melodias.
Os
amigos de Noé tiveram o pressentimento de que o melhor seria
regressarem. Talvez aquilo fosse uma ratoeira para os prender. Não
se compreendia como tinham chegado tão depressa a uma das matas que
circundava a cidade.
Mas
Noé achou que não. E acusou-os de serem uns medrosos que por
qualquer coisa se borravam nas calças. Ali, não havia mal nenhum,
garantia. Se alguém tivesse a intenção de os incomodar, ele
encarregar-se-ia de lhe dar uma lição, apesar de só ter um braço
disponível para o efeito. É que os pés também contavam, e a
cabeça, que saíra incólume da mais recente briga com Júlio.
Portanto, nada havia a recear.
Continuaram
o passeio para além da zona que conheciam e dominavam. E, num dado
instante, houve um remexer de folhas a três ou quatro passos de
distância, como se um bando de espíritos danados andasse a
cercá-los.
Os
acompanhantes de Noé recusaram-se a avançar, tremendo de medo pelo
desconhecido que os esperava. Deram meia volta e desataram a correr
como putos de colégio depois do assalto a um laranjal, indo
barricar-se atrás das primeiras casas que serviam de frágil muralha
à cidade de construções desengonçadas.
Noé
ficou no papel de não poder dar parte de fraco. Quem se aventurara a
combater Júlio da forma que ele o fizera não podia correr o risco
de sofrer agora uma humilhação, fosse ela qual fosse.
Deste
modo, ainda que não se sentisse muito à vontade depois da debandada
dos amigos, Noé prosseguiu a sua marcha solitária, enquanto se
esforçava por disfarçar os nervos. E entretinha-se a assobiar, de
mãos nos bolsos, para dar imagem de um gigante desinteressado que
não receava o que quer que fosse.
Os
gigantes que tinham regressado à cidade ficaram a vê-lo de longe
entornar a cabeça para trás, continuando a esvaziar garrafas,
recortado no horizonte das folhas mais claras. Noé caminhava sem
denotar qualquer preocupação com os ruídos invisíveis que o iam
apertando cada vez mais. Qualquer um adivinharia os passos encobertos
pelo arvoredo. Como um arame denso. Só Noé não se dava conta do
perigo.
Demorou
pouco tempo até que tudo se tornasse evidente.
Subitamente,
viu-se uma dança de árvores, com troncos dobrando a cintura e
folhas a despegarem-se dos ramos. O céu limpo encheu-se de trovoada.
Noé
foi cercado a norte, sul, este e oeste. A investida paralisou-o. E
permitiu que o assaltassem por todos os quadrantes. Tudo decorreu com
tal eficiência e rapidez que se ouviu mesmo dizer que os agressores
tinham utilizado métodos avançados para anular o poderoso gigante.
Só
assim se compreendia que Noé tivesse cedido como uma andorinha, sem
ao menos cuspir para a atmosfera um dos seus urros monstruosos
capazes de incendiar as nuvens ralas que passavam velozes sobre a
humidade.
Não
conseguindo perceber o que sucedera, os amigos de Noé regressaram a
casa cabisbaixos, depois de terem decidido que não falariam a
ninguém sobre a ocorrência. Noé havia de saber desenrascar-se. De
qualquer modo, a culpa fora dele, que teimara em continuar a
aventurar-se por entre as árvores. Tanto quisera mostrar valentia
que acabara por cair numa armadilha cujas consequências ainda
estavam por saber.
Só
no outro dia de manhã se soube da sorte de Noé. Os gigantes foram
acordados por um ruído ligeiro de passos secretos junto à porta de
casa do desaparecido. As mulheres vieram logo espreitar às janelas e
viram todas as peças de roupa de Noé dependuradas no puxador. Não
chegaram a tempo de ver mais alguém.
Quanto
a Noé, que ninguém via desde o dia anterior, apareceu a descer a
rua, mais tarde, completamente nu.
O
seu corpo era uma massa enorme que apenas encontrava equilíbrio
contra as paredes instáveis das casas. As peles flácidas
tremiam-lhe como flores num jardim de Inverno. Noé só trazia
resguardado em panos o braço por onde Júlio lhe sugara o sangue e o
pénis do tamanho de uma abóbora, que era o seu motivo de maior
orgulho.
X
Há
já algum tempo que Júlio caminhava por uma longa estrada de asfalto
brilhante. O coração batia-lhe em pancadas secas no peito pelo
esforço despendido. Mas ele continuava em grandes passos disposto a
ir até ao fim do percurso. Nunca o fizera, embora a paisagem despida
lhe parecesse estranhamente familiar.
Júlio
era acompanhado por uma música suave que não se percebia bem de
onde vinha. Não se notavam por ali sinais de altifalantes ou de
qualquer aparelhagem de som.
A
estrada era sempre a direito e afunilava para o horizonte à medida
que o olhar se estendia. Era uma recta lisa e perfeita, sem
irregularidades no piso, nem flores nas bermas para distrair os
viajantes.
Muitos
destes vinham a quilómetros de distância de Júlio, que ia adiante
na esperança de ver resolvido o seu caso com a maior brevidade
possível.
Ainda
pensou fazer uma espera para inquirir aos detrás se sabiam onde
conduzia aquele caminho, mas desistiu da ideia, porque não queria
que alguém mais atrevido se aproveitasse da sua curiosidade para lhe
passar à frente.
Ao
fim de uma quantidade de tempo, o gigante chegou a uma bifurcação
na estrada. Deteve-se e pôs-se a pensar qual dos caminhos devia
seguir.
Verificou
que havia duas placas. Uma dizia que o caminho da direita dava para o
Céu e a outra que o da esquerda dava para o Inferno.
Júlio
ficou perplexo perante o dilema. Pôs-se a fazer contas à vida.
Avaliou as consequências da escolha que faria.
De
um lado estava Deus, do outro o Demónio, ambos dispostos a
tornarem-se donos das consciências, concedendo o prémio ou o
castigo pelos actos cometidos na Terra.
À
primeira vista, o gigante preferia o Inferno, pois o Demónio, rei
das trevas chamejantes, sendo o contrário de Deus, tinha falta de
atributos. Se assim não fosse, poderia ser considerado outro Deus,
hipótese pouco provável, já que era por demais sabido existir só
um Criador de todas as coisas.
Convinha-lhe
ficar sob o domínio do mais fraco, ignorante, estúpido, volúvel.
Para que, um dia, tivesse hipóteses de o vencer num eventual combate
de corpo e tomar o poder no reino das chamas. Se Júlio o
conseguisse, faria uma revolução em toda a linha nos domínios do
mal.
O
Paraíso não atraía Júlio. Imaginava o espaço de Deus segundo as
regras fundamentais da monotonia, da rotina, do aborrecimento. No seu
entender, Deus devia ser muito desprovido de imaginação porque
submetia as pessoas a uma obediência de carneiros sem criatividade.
Só queria paz, paz e mais paz.
Ora,
se Júlio fosse para o Céu, contra quem iria lutar? Ele não era
homem para se deixar cair numa situação de conformismo.
Tirarem-lhe
o espírito briguento seria o mesmo que anularem a sua identidade
mais profunda.
Júlio
nunca se tinha submetido à vontade de alguém. Não seria agora Deus
a conseguir a sua rendição.
Além
disso, que haviam de dizer os outros gigantes, quando no futuro
recebessem a informação de que ele andava misturado com os santos e
os anjos no Paraíso em devoções e cânticos laudatórios a um
indivíduo que passava o tempo a cabecear de soneira na poltrona da
eternidade?
Perderiam
o respeito pela sua memória e naturalmente escarrariam sobre o
pedaço de terra ao qual o seu corpo descera.
O
Inferno era o local mais indicado para Júlio habitar, porque lá se
encontravam pessoas inteligentes e insubordinadas, em grandes festas
de bebedeiras e folguedos de danças por entre o frenesim das
labaredas.
O
Inferno devia ser mesmo um inferno, imaginava Júlio. Devia ser o
fosso onde ninguém tinha mão sobre ninguém, cada um fazia o que
queria e todos tinham razão.
Júlio
estudava já a maneira de se opor à anarquia reinante no país do
Demo, onde não faltariam de certeza, presidentes, reis, ministros,
ladrões, vigaristas, padres, jornalistas, polícias e empresários.
Na
sua opinião, o Inferno não devia ser muito diferente da cidade para
onde os gigantes haviam sido escorraçados. E a experiência
adquirida junto dos monstros havia de lhe valer alguma coisa.
Utilizaria
a sua capacidade de observar os pontos fracos do inimigo. Far-se-ia
ingénuo, simularia raciocínios vagos e lentos. Até ao dia em que
organizaria um exército com base nos reles condenados a quem ninguém
dava importância.
Depois,
partiria à conquista do Paraíso. Se o Criador era bom, calmo,
pacífico e sem rancores, como constava, seria relativamente fácil
chegar junto d’Ele, e simplesmente sugerir com palavras dóceis que
tivesse a fineza de abandonar o seu trono. Porque a sua hora tinha
chegado.
O
mais provável era que o Sumo Poderoso lhe fizesse a vontade sem
pestanejar. Ou não fosse a obediência a regra-mor nos seus
domínios.
Era
difícil de crer que os anjos esboçassem qualquer reacção ao
inesperado assalto. Toda a gente sabia que os anjos são leves e
puros, incapazes de qualquer agressão, ainda que em defesa do seu
Senhor. Tinham sido educados para servir e embelezar os recantos do
Céu, tal como as estátuas nos jardins e nas praças públicas. Por
isso, haviam de mostrar-se inofensivos perante quem desse provas de
engenho e força para ocupar o assento onde os destinos dos homens se
decidiam.
Nessa
altura, Júlio estava convicto de que poderia finalmente tratar com
justiça dos seus negócios pendentes com Noé.
Lá
de cima do trono usurpado a um Deus frouxo e sem iniciativa, ele
faria do eterno rival um autêntico fantoche na ponta dos seus dedos.
Exigiria que Noé se lhe ajoelhasse aos pés, caso pretendesse voltar
a ver a mãe, que andaria entrevada num beco a recolher carvão para
aquecer a água em que Júlio se banharia com as maiores beldades,
loiras, ruivas e negras. Tudo livre e sem discriminação. E se Deus
quisesse voltar a merecer um lugar no Céu, teria de passar pela
prova do Inferno, sem a qual ninguém tem o direito de orientar ou
decidir sobre as vidas alheias.
Assim,
o destronado teria a possibilidade de, posteriormente, voltar ao
convívio com os seus, agora já não servos, mas iguais. A intenção
de Júlio era fazer do Paraíso um lugar onde todos pudessem ser
verdadeiras pessoas, devendo aproveitar-se a verdura e beleza dos
campos para um tempo de riqueza e perene vivência dos frutos.
A
decisão estava tomada. O Inferno esperava por Júlio.
Mas
quando ele se preparava para avançar na direcção dos reinos
demoníacos, alguém lhe pegou no braço e puxou para trás...
Júlio
perdeu o equilíbrio, cambaleou, agarrou-se a uma nuvem e
recompôs-se. Abriu os olhos, demorando uns segundos a compreender o
que se passava.
Acabara
de se libertar das garras da morte que tinha passado à porta de sua
casa para o levar. Mas houve alguém que o despertou de repente,
chamando-o à realidade, antes que fosse tarde demais.
Apesar
do atordoamento que sentia, Júlio ainda pensou voltar atrás para
trocar as placas que assinalavam a direcção do Céu e do Inferno e
assim influir no destino das gentes que caíam nas garras da morte.
Mas reflectindo melhor, achou que não valia a pena arriscar. Podia
já não ter tempo para regressar à cidade são e salvo.
XI
Durante
uns dias, Noé teve vergonha de aparecer na taberna. Sentia-se corar
da cabeça aos pés só de pensar no que os outros gigantes diriam de
ele ter estado tanto tempo fora da cidade e, por fim, ter regressado
nu, à vista de todos. Sem que houvesse qualquer explicação
razoável para o facto.
Mas
até lhe dava um certo jeito ficar uns tempos retido em casa. É que
a carta enviada do Paraíso, conforme a mãe prometera, poderia
chegar a qualquer momento. E ele estava bem precisado dela para
voltar aos jogos da taberna. A missiva divina seria o certificado de
garantia de que Noé era realmente o homem mais forte da cidade. E
faria esquecer as suspeitas levantadas pela sua última desventura na
mata...
Contudo,
o embaraço de Noé só se manifestava durante o dia. Porque, à
noite, ele continuava a fazer as escapadelas do costume. Descia a
caves remotas inundadas de fumo e silhuetas macabras à roda de
mesas, em torno das quais as conversas eram iluminadas por candeeiros
a petróleo.
Quanto
a Júlio, depois de recuperado da bebedeira, passou a ocupar-se da
desmontagem, peça por peça, dos camiões que ele próprio
destruíra. Com a ajuda dos filhos, ia transportando para a oficina
os restos aproveitáveis dos metais que a sua fúria retorcera e
amachucara. Fazia-o com tal zelo que até parecia que há muito
acalentava o sonho de se apoderar de tanta chapa amolgada e partes de
motor que o haviam de ajudar a passar as horas entre as bugigangas na
oficina.
Júlio
e Noé atravessavam agora uma fase mais recatada nas suas vidas, uma
espécie de intervalo até à próxima briga, mas nem por isso a
cidade estava mais calma. Porque se ouvia dizer que uma mulher
vestida com uma camisa de dormir quase transparente andava a
percorrer as ruas durante a noite. Contava-se que se deslocava em
bicos de pés, dando voltas completas à cidade por entre os lençóis
escarpados da noite sem berço. Mas quando ela passava junto às
casas, os gigantes ficavam com rolos de saliva a deslizar pelos
dentes escurecidos.
A
dita mulher falava sozinha durante as suas evasões, e se não falava
sozinha falava com a sombra escorregadia que lhe andava no encalço.
E também se dizia que ela cantava, em vez de falar. Que tocava
flauta para enfeitar os sonhos dos gigantes.
Só
que, no outro dia, toda a gente acordava meio atarantada, com a
cabeça pesada e húmida, sem saber porquê. Tinham apenas uma vaga
ideia de que qualquer coisa acontecera. Procuravam recordar-se, mas
não conseguiam. O que lhes restava era uma espécie de açúcar
amargo na lembrança.
A
mulher que vagueava pelas noites chegava mesmo por vezes a sair dos
limites urbanos. E teria ganho o hábito de se perder por entre a
folhagem das matas circundantes, sem que, pelos vistos, fosse atacada
por estranhos e devolvida nua à cidade, tal como acontecera a Noé.
Por essa razão, passou a ser temida por todos. Uns consideravam-na
deusa, outros bruxa. E ninguém se atrevia a impedi-la de realizar a
sua liberdade.
A
horas muito pouco recomendáveis, não faltou quem a visse com
frequência regressar a casa cerca das cinco da manhã, em pontas de
pés, por cima de muros, telhados e chaminés, em passos alegres,
atravessando courelas e hortas, riachos e canaviais que lhe deixavam
na pele marcas azuladas e roxas.
Porém,
seria difícil identificar posteriormente a mulher por esses sinais,
pois todas as gigantas tinham marcas idênticas provocadas pelas
pancadas que os maridos lhes davam quando chegavam a casa derreados
de bêbedos.
Também
corria o boato de que a mulher podia ser uma alma penada, que
cirandava pela cidade atolada em remorsos. Por exemplo, alguma jovem
enviada pela mãe de Noé que, depois de ser informada do último
vexame por que o filho passara, lhe pedira para entregar a carta na
qual se afiançava, letra por letra, que Noé era o homem mais forte
da cidade. Só que a mensageira se teria perdido pelas ruelas e não
havia maneira de atinar com a caixa do correio da casa onde Noé
vivia. Por isso, vaguearia pela noite dentro, deixando os gigantes
desnorteados.
Contudo,
havia quem defendesse que a estranha mulher seria uma giganta em
carne e osso que simplesmente não se resumia aos prazeres de um só
homem.
Por
isso, havia muitos gigantes sem pregar olho atrás das janelas, a ver
quando ela passava. Depois, logo que ela aparecia, punham-se a
retorcer as pálpebras e a assobiar baixinho. Algumas gigantas
acordavam e perguntavam o que estava a acontecer. Então, eles
voltavam logo a seguir para a cama, indo enterrar-se entre o calor
das pernas delas. Depois de se terem satisfeito, iam de novo vigiar
para trás da vidraça.
Dizia-se
que a mulher lançava maus olhados a certos gigantes que,
ultimamente, tinham mesmo passado a dormir toda a noite com os
narizes encostados à janela. Alguns deles passaram a ser mais
intolerantes com as mulheres, espancando-os sempre que elas
insinuavam alguma coisa sobre as insónias deles.
As
mulheres tinham-se habituado a tudo. Às bebedeiras dos maridos, à
solidão, à pancadaria de que eram vítimas, aos filhos ranhosos e
sebentos, só não estavam preparadas para as andanças libertinas de
uma mulher tresloucada que ameaçava o futuro de todos. As suas vidas
de pedra transformaram-se em dias e noites de chumbo. Muitas gigantas
passaram a rezar pela salvação da cidade. E choravam sempre que a
noite se aproximava. Como se houvesse um arame farpado a apertar as
consciências.
XII
Agora
que Noé estava quase sempre em casa, não tinha oportunidade de
resolver os seus assuntos nas idas à taberna e às caves onde à
noite se sumia.
Por
isso, começaram a reunir-se gigantes à sua porta. Procuravam não
dar nas vistas, mas percebia-se que ali havia coisa, por causa dos
murmúrios e falas cautelosas. Em certos dias, as pessoas chegavam
mesmo a fazer bicha, à espera de serem atendidos. Negócios,
acordos, sabe-se lá, o que podiam querer de um homem que passava as
horas à espera que a mãe lhe enviasse uma carta do Paraíso!
Frequentemente,
a procura dos serviços de Noé continuava pelas noites dentro.
Às
vezes, Noé vinha à janela espreitar, olhava à direita e à
esquerda e, se via motivos disso, saía de casa, dava a volta à
fechadura, dizia que era só um instante e desatava a correr pela rua
na direcção de uma cave mal iluminada, onde se sabia estar o centro
de decisão dos casos mais complexos.
Noé
só era esperto de garganta. A massa do cérebro escasseava. Por
isso, ele servia bastante de intermediário na resolução dos
assuntos que lhe passavam pelas mãos. Necessidades urgentes de vária
índole, empréstimos de dinheiro, pedidos de graças a uma santa,
contrabando de alimentos e outras mercadorias, consultas à Bíblia,
auscultações de hipóteses de viagens para outros países onde os
gigantes pudessem viver em liberdade entre vulgares cidadãos.
Ele
assentava tudo para não se esquecer. Por vezes, resolvia o caso no
momento, mas outras vezes adiava, respondia que ia ver o que podia
fazer, talvez fosse possível arranjar alguma coisa, apesar de a
situação estar difícil...
De
uma forma ou de outra, conseguia sempre transmitir alguma esperança
aos que o procuravam. A maioria dos pedidos que faziam, porém, dizia
respeito a dinheiro emprestado para pagar os fiados das bebedeiras.
Um dia, acabava-se o crédito e os gigantes não podiam deixar de
beber. Então, iam a correr ajoelhar-se diante de Noé, que
aproveitava para subir as condições dos empréstimos.
Grande
parte deles vivia acima das suas posses. O dinheiro que a maioria
recebia do Governo esgotava-se em pouco tempo. Depois, era preciso
fazer milagres para arranjar verbas. Muitos gigantes chegavam a
oferecer os filhos em troca de finanças. Ou recorriam a outros
esquemas.
Desta
forma, Noé ia enriquecendo, ao contrário das aparências
enganadoras. Teve sempre metal reluzente para comprar as incontáveis
caixas de cerveja que se empilhavam na sua cozinha. Além de se
murmurar que tinha fabulosas contas bancárias.
Certa
noite, havia uma giganta no último lugar da bicha à porta de Noé.
Toda ela parecia um embrulho de cobertores e xaile pela cabeça.
Sinal de apoquentação máxima.
Todos
sabiam de quem se tratava. Mas Noé teimava em não querer ajudá-la.
Duas noites antes tinha-a mesmo acompanhado à porta de casa com
palavras azedas e empurrões.
Porém,
a mulher ali estava, de novo, cada vez mais sumida sob a grandeza do
sofrimento que trazia no peito. Quando reparava que estavam todos a
olhar para ela, puxava o xaile para o nariz, num gesto inútil de
acanhamento.
A
giganta, que perdera o marido dois anos antes, não desanimava.
Mantinha-se de pé durante horas, até que Noé decidisse resolver o
seu assunto.
A
viúva não se dava bem na cidade. Os calores húmidos faziam-lhe
mal, retorciam-lhe as veias do coração, enchiam-lhe a cabeça de
marteladas contra os olhos. Por isso, ela acalentava o desejo de
partir para outros lugares, talvez um país onde o ouro saltava
directamente da terra para a mão das pessoas.
O
problema é que não tinha posses para fazer a viagem. Daí a sua
insistência junto de Noé para que a ajudasse. A mãe dar-lhe-ia a
recompensa merecida na carta que estava para chegar. Assim como
outras maravilhas que o gigante havia de ter para o resto da vida.
Ela rezaria a todos os santos para que Noé vencesse Júlio no mais
curto período de tempo possível.
A
mulher fora ao ponto de se oferecer para descobrir que tipo de
experimentações e engenhocas Júlio andaria a tecer na sua oficina
para depois vir contar tudo a Noé. Desta maneira, ele poderia
preparar-se com os melhores argumentos para o próximo confronto com
o seu maior rival.
E
as viúva também disponibilizou os seus préstimos para limpar a
porcaria que se multiplicava por todos os quartos e frestas de
paredes desde o baile de gigantes que se realizara em casa de Noé.
Mas este mantinha-se insensível e indiferente.
Para
já não falar do pormenor de a viúva ter sido amiga da mãe de Noé,
desde a idade de uns namoricos puros que nenhum mal trouxeram ao
mundo. Ambas sempre tinham sido dignas do maior respeito nos seus
comportamentos. E só perderam o rasto uma da outra a partir do dia
em que a mãe de Noé passara a ter que debater-se com um gigantinho
aos pontapés no seu útero. Noé começava cedo a ensaiar os
primeiros golpes de ataque e defesa, que muito lhe haviam de servir
pela vida fora.
A
tudo o que a viúva pedia, oferecia, explicava, disponibilizava, Noé
respondia com ouvidos de mouco. Mas nem assim ela desistia.
Deixava-se estar sempre na bicha, com a cabeça descaída, fazendo
lembrar um novelo que não mostra as pontas. Só corria o risco de
ver cair por terra a sua esperança, caso Noé perdesse a paciência
e a afastasse da sua porta de uma vez por todas.
A
bicha diminuía para toda a gente menos para a viúva. E houve uma
altura em que ela olhou à sua volta e verificou que estava sozinha.
Pouco
depois, a porta abriu-se e Noé apareceu com um gigante dependurado
na mão. A vítima esperneava e pedia clemência. Contudo, Noé não
estava para aí virado. Avançou para o meio da rua e pôs-se a andar
com ele à roda como se se tratasse de um saco de batatas. A seguir,
largou-o!
O
miserável foi cair de ventas na lama, com os membros virados cada um
para o seu ponto cardeal. Mas logo a seguir levantou-se com redobrada
genica e desapareceu na escuridão sem dar tempo a Noé de o
arremessar novamente. Era um caso perdido.
Sem
saber como, no meio da confusão que se gerou quando Noé arremessou
o gigante ao deus dará na escuridão, a viúva reparou que tinha
perdido o xaile que a cobria e resguardava dos olhares menos
discretos.
Ao
reentrar em casa, Noé confundiu-a com outra pessoa. Não estava
habituado a vê-la tão desprovida de agasalho.
Ela
percebeu o que se passava e não perdeu tempo para negociar a sua
situação. Antes que Noé se desse conta do logro.
Puseram
tudo no seu devido lugar, esclareceram dúvidas, marcaram prazos,
estipularam condições.
A
finalizar a conversa, quando a viúva se esgueirava manhosamente na
direcção da porta de saída, Noé foi atrás dela e sugeriu que
naquela noite ela deixasse aberta a porta traseira da casa onde vivia
com a filha, pois ele se encarregaria de aparecer depois da
meia-noite para dar um ponto final no assunto...
A
viúva respondeu com uma gargalhada e disse que Noé não precisava
de se incomodar. Tudo se resolveria se fosse ele a deixar a tranca da
sua porta ligeiramente fora do trinco...
Com
esta, a giganta saiu e pôs-se a procurar o xaile que lhe havia caído
no meio da rua. Encontrou-o, cobriu-se e afastou-se, no instante
exacto em que se ouvia ao longe a melodia de uma flauta, que havia de
deixar muitos gigantes a revirar-se de frios acalorados na espinha da
cama.
XIII
No
casebre onde vivia, Júlio acordava agora assiduamente durante a
noite, com as formas da chaparia e parafusos dos camiões a
bailarem-lhe nas vistas por entre a matéria ramelosa acumulada.
Ele
via Dora muito bem estendida a seu lado na cama, com um ar de relva
púrpura na face. A agitação das noites avivava o sangue por todo o
corpo da mulher e humedecia-lhe a intimidade. Então, o gigante
enrolava-se nela, ardorosamente, à semelhança do que fazia nas
brigas com Noé.
Dora
desatava aos risos, mesmo a dormir, sempre a dormir. O seu sono era
uma aragem fresca sobre a pele de seiva.
Nessas
alturas, Júlio não tinha razões para lhe bater com a fivela do
cinto, ou com o cabo metálico da vassoura. Estava atordoado pelo
álcool e pelas dúvidas que começava a alimentar acerca do
comportamento da mulher.
Quando
percebia o que se passava na cabeça do marido, Dora mostrava-se
arrediça logo depois de o ter atraído. Hesitante, vagamente
incomodada.
E
saltava para fora da cama, equilibrando-se a custo por entre os
corpos amontoados dos filhos a toda a largura do quarto, para se ir
pentear diante do espelho. O seu reflexo agigantado dificilmente
cabia dentro da moldura. Por isso, ela tinha de escolher os ângulos
de exposição à medida que desenriçava as tranças que lhe caíam
sobre as costas.
Daquela
posição, Dora conseguia ver Júlio através do espelho, de costas
viradas para ela, subitamente esquecido dos apetites, roncando como
um monstro no ar pesado da noite. Mas isso não queria dizer que ele
estivesse a dormir. Podia estar apenas a estudá-la, no meio dos seus
rancores tenebrosos e ciúmes enjaulados.
O
corpo de Júlio mantivera a impaciência ao longo dos anos. Ele tinha
um espírito que a mulher não dominava nem entendia. Era diferente
todos os dias, quando a agredia, quando a acariciava, quando a
desprezava. Até nos sonhos, era imprevisível. Por isso, era
legítimo que aspirasse ao trono de o homem mais forte da cidade.
Ela
afastava-se do espelho, deixando cair os pensamentos menos
esclarecidos. Sentia que não podia ficar na cama sem nada fazer
durante toda a noite, quando o sono lhe fugia da alma, deixando-a só
e desamparada.
Dora
queria demonstrar à viva força que era mais limpa do que a
generalidade das gigantas. Mas evitava as lavagens durante o dia para
que não percebessem os segredos da sua higiene. Então, quando todos
dormiam a bom dormir, quando terminava os seus penteados diante do
espelho, ela punha-se a carregar baldes de água que ia encher à
fonte pública, munia-se de esfregona e sabão, e desatava a lavar o
frontispício da casa. Atirava baldes de água contra as paredes e as
janelas, esfregava, voltava a baldear, voltava a esfregar...
Na
manhã seguinte, a sua casa estaria alva e cheirosa por algumas
horas, até que os filhos acordassem e se pusessem a revirar e sujar
tudo o que encontravam à mão.
Na
noite seguinte, ela deixar-se-ia cair na cama, esgotada de inchaço,
devido ao esforço despendido nas limpezas.
E
não ligava a Júlio, que passava horas a olhar para o seu tornozelo
direito, como um desassossego que não cabia debaixo do lençol, até
se afundar na bebedeira do sono.
Ao
ver a mulher daquela maneira, indiferente e extenuada, Júlio começou
a coleccionar ideias estranhas na cabeça. Foi deixando de repousar
como um elefante.
Saía
para a rua, vagueava por becos e traseiras de casas, por ruas que
subiam com a sensação de descerem.
O
gigante desconfiava que o perseguiam. Debatia-se contra a
multiplicação dos perigos que lhe apertavam o cerco.
Nas
noites em que deambulava por toda a cidade, nem a mulher de camisa de
noite transparente se atrevia a aparecer pelas redondezas. E o
próprio Noé apressava as consultas em sua casa.
Mas,
por mais voltas que desse às reflexões, Júlio acabava sempre por
ir sentar-se no degrau de pedra à porta da oficina, onde tinha
infalivelmente à sua espera a cadela que lhe guardava as bugigangas.
Ela
estava grávida e carente e punha-se lamber-lhe os tornozelos,
reconhecida pela sua presença.
Ao
repeli-la com o bico do pé, o gigante obrigava-a a afastar-se para
uma distância prudente, fixando nele olhares sábios e ressentidos.
Mas
pouco depois a mágoa desvanecia-se e a cadela reaproximava-se,
lentamente, conseguindo que Júlio lhe cedesse um espaço a seu lado.
Feitas as pazes, ela deitava-se e reclinava o focinho sobre as patas.
Ao
fim de algum tempo, em que os dois aproveitavam para analisar as
razões na cabeça um do outro, Júlio descalçava os sapatos e
punha-se a mexer os dedos do pé, a fim de os exercitar minuciosamete
para a próxima luta com Noé.
A
cadela, então, rastejava em direcção aos pés do gigante, como se
não pudesse resistir aos seus apelos e com a ponta da língua
humedecida acariciava-lhe os dedos, as unhas, os ardumes das
saliências e reentrâncias.
Não
podendo controlar as sensações, o gigante desatava a rir numa
convulsão que se estendia sobre a cidade como uma trovoada imensa de
latas a chocalhar.
As
gaitadas de Júlio pareciam ser uma resposta, ainda que tardia, aos
risos desconcertados de Dora, quando ele se engalfinhava nela para
lhe sugar as partes tenras e lhe deixava marcas arroxeadas na pele,
que haviam de misturar-se depois aos sinais de violência com que ela
já se habituara a ser prendada por ele.
Nos
intervalos das gargalhadas que as lambidelas do animal faziam
despertar em Júlio, levando-o a cuspir labaredas sonoras para as
nuvens, o gigante deu-se conta da interferência de uma voz feminina
à solta nas ruas.
Fazia
lembrar as manhãs em que os galos se põem a cantar ao desafio pelas
encostas ainda pouco visíveis de uma claridade rarefeita na poalha
da noite.
Era
a primeira vez que tinha uma percepção tão nítida da presença da
mulher que dava a volta à cabeça dos gigantes com a transparência
da sua camisa de dormir.
Agitada
com a cena, a cadela de Júlio desatou numa roda viva atrás da
própria cauda, largando depois a correr pelas ruelas sombrias da
cidade, como se houvesse alguém com uma rede a persegui-la.
Júlio
deixou de rir. Com um pé descalço e o outro no sapato, arrancou
dali para fora, em busca da voz feminina, ou em busca da cadela.
Ambas estavam perdidas no abismo das casas.
O
gigante encheu-se de fé, a ver se encontrava um rasto de cabelo,
pulseira, xaile, debaixo dos lampiões, rente às fechaduras das
portas...
Ao
passar junto da casa de Noé, percebeu que a melodia perturbadora
vinha do sótão, onde se via uma luz mortiça na janela furtiva. Não
podiam restar dúvidas. A mulher de camisa transparente estava
aninhada nos braços do seu grande rival.
Ficou
à escuta dos gemidos amorosos, remoendo-se-lhe os fígados segundo a
cadência dos bemóis na boca ardente da mulher. E Júlio ouvia ainda
o resfolegar das notas graves que o órgão do adversário fazia
transbordar no peito de foles incansáveis.
Júlio
não descansaria enquanto não soubesse a identidade daquela mulher
que se rebolava na cama do seu grande inimigo. O desfecho do último
combate entre os dois poderia estar nas mãos da misteriosa giganta.
E ele tinha que acautelar-se. Para não perder o controlo da
situação.
Os
sinos tocavam a rebate na sua cabeça. Pareceu-lhe pouco oportuno
invadir de surpresa a alcova do rival, que podia muito bem ter-lhe
preparado uma armadilha.
Júlio
pôs-se a andar nas ruas, para um lado e para o outro, sem se
preocupar com o rumo que seguia.
A
sua inquietude fazia lembrar a roda-viva da cadela atrás da cauda. A
transpiração caía-lhe em pingos grossos pelas costas. Apesar de
todas as voltas que deu à imaginação, Júlio não conseguiu
identificar a mulher que estava no sótão de Noé.
Ao
fim de umas horas, a voz feminina desapareceu e a luz apagou-se na
janela do seu rival absoluto. A giganta estava realizada e Noé
também. A calma desceu sobre a cidade.
Sem
saber como, Júlio deu por si a poucos metros da porta da sua própria
casa. A porta onde tantas vezes entrava aos urros e cabeçadas.
Estava desnorteado com o que ouvira. Os gemidos da giganta faziam eco
nos seus ouvidos. Júlio sentia-se estranhamente próximo deles. Mas
isso não fazia sentido, porque ele nunca vira semelhante mulher em
dias de sua vida.
Júlio
olhou para o chão e viu uma aliança a brilhar, um anel tão grande
como um arco de brincadeira infantil esquecido sobre o asfalto. Parou
e observou com toda a atenção. Pareceu-lhe o anel que oferecera a
Dora no dia em que tinham legalizado a união das suas vidas.
O
gigante sentiu um abalo na massa do coração. Entrava ou não
entrava, era o seu dilema. Pegou no anel, procurou a chave de casa,
mas não a encontrou nos labirintos do bolso. Enfiou uma joelhada na
porta, arrombando-a, e só se deteve, lívido de rancores, junto à
cama, onde a mulher dormia tranquilamente rodeada dos gigantecos e
gigantinhos.
Com
as vistas em brasa, Júlio procurou a dobra do lençol sobre a qual a
mão esquerda de Dora repousava. E a comprovar a sua desconfiança,
lá estava realmente o dedo com a falta do anel.
XIV
Acordada
por uma lucidez repentina, Dora abriu os olhos semelhantes a duas
folhas de ave e fixou o marido. Este não esboçava qualquer gesto de
agressão, apesar da descoberta que fizera do anel a curta distância
da porta de casa. Júlio parecia estar preso a uma única ideia, que
lhe entrava pelas vistas, e que se espraiava por todo o seu campo de
raciocínio, fazendo lembrar um monstro marinho com o dedo
desconfiado no gatilho.
Com
um monte de buzinas a apitar junto às suas têmporas, Dora saiu da
cama e sentiu-se invadida por uma daquelas venetas que lhe dava uma
grande vontade de dominar à esquerda e à direita.
Enfiou
a sua melhor roupa a um ritmo indescritível, enquanto ia e vinha em
gestos determinados através da casa, gancho de cabelo estudado no
reflexo ainda escuro do vidro, colar a seguir, brincos do tamanho de
relógios, meias longas esticando as pernas sentadas à beira da
cama, presas a ligas que as seguravam perto das coxas. Dava a
impressão de a mulher estar disposta a um sério ajuste de contas
com alguém.
E
talvez por isso ela saiu de rompante porta fora, ouvindo-se depois o
matraquear dos seus passos a afastar-se numa progressão que
rapidamente diminuía com a distância.
Júlio
ficou sentado na cama, sem nada dizer. Apenas com o dedo no gatilho
da imaginação. Mas sem conseguir disparar contra uma mosca.
Dora
foi bater à porta da viúva, que passara as últimas noites
pacientemente na bicha para resolver um negócio com Noé.
O
mundo ganhou as cores vivas de um arraial nos pensamentos de Júlio.
A única certeza que tinha era a da sua mão fechada no bolso
agarrando o anel de todas as suas dúvidas. Estirou-se na cama e
deixou-se estar, vestido, calçado, com os olhos fixos no tecto.
A
certa altura, chegou-lhe aos ouvidos uma enxurrada de gritos. Havia
mulheres à bulha, pensou.
Levantou
a cabeça, para a desentorpecer. Os gritos que ouvira não seriam
nada de especial. A avaliar pela distância, Dora devia andar por lá
perto. Ou saber ao menos o que se passava...
Depois
de bater à porta da viúva, ela ficara à espera que a atendessem.
Tinha a alma afundada num reboliço de formigueiros cruzados.
Veio
abrir a porta uma jovem desgrenhada com as franjas da camisa de
dormir a arrastar pelo chão dos pés nus.
Logo
que a viu, Dora atirou-se a ela, de unhas afiadas. Puxou-a para a
rua, agarrando-lhe a cabeleira com as mãos e obrigando-a a inúmeras
voltas de pião.
Apanhada
de surpresa, a mulher não reagiu. E deixou-se cair no sítio para
onde a força de Dora a atirou.
A
mãe apareceu aos gritos pelo corredor, como quem dirigia uma
filarmónica desafinada. Mas a filha já dera sinal de si,
prontificando-se a aumentar a gritaria e a reagir com todos os seus
direitos de giganta ferida.
As
duas mulheres envolveram-se numa luta de beliscões a arranhadelas,
cada uma agarrada aos cabelos da outra, esticando-os até arrepiar.
Júlio
irrompeu na esquina, mais tarde, para saber a causa exacta dos
berros. Percebeu que Dora não perdoava à rapariga a ideia de que
ela andaria envolvida com o marido, desde a noite em que tinham
começado as cantorias sobre as chaminés dos gigantes adormecidos.
Desinteressado
do que via, o apático gigante saiu dali, talvez à procura da cadela
esbaforida e grávida que se perdera no desassossego das ruas. Após
o reencontro, ele havia de lhe dar a lamber, de novo, as feridas.
Na
esquina por onde Júlio se esfumou, os rostos esgrouviados foram
aumentando em número e curiosidade. Os becos e as janelas
encheram-se. Em aparente resposta à viúva que esbracejava em volta
das mulheres desavindas. Parecia ter um demónio dentro dela.
Ninguém
dava mostras de estar interessado em acabar com a briga. Todos
queriam ver, apenas ver.
Nem
as próprias gigantas, que se iam ferindo com dentadas intempestivas
uma na outra, davam importância ao que acontecia em seu redor.
No
entanto, a filha da viúva acabou por se desenvencilhar dos dentes de
Dora e refugiou-se em casa, quando menos se esperava.
Contudo,
reapareceu pouco tempo depois, dando-se ao trabalho de expor uma
quantidade de gavetas na rua. E chamava a atenção das pessoas para
a limpeza das roupas que tinha em casa.
Segundo
dizia a quem a quisesse ouvir, nunca tinha conhecido cama diferente
da sua. Muito menos a de Júlio, que era porca e imunda, covil de
percevejos barrigudos.
A
jovem brandia cada uma das suas peças, levantava-as no ar, como
prova de verdade. A mãe, continuando a esbracejar, vinha ajudá-la e
repetia letra por letra tudo o que a filha dizia.
Só
faltava àquela espécie de leilão improvisado no meio da rua um
altifalante de vendas apressadas em feiras ciganas. Mas elas não se
preocupavam com isso. Porque uma goela de giganta valia facilmente
uma dúzia de aparelhagens sonoras!
Apesar
do chinfrim esganiçado de mãe e filha à volta das gavetas
desarrumadas, Dora não desistiu das suas acusações. Insistia em
esclarecer o que se havia passado nas noites mais recentes. E
continuava a afirmar que a filha da viúva era a alma penada que
inundava a cidade de vibrações, plantando fios de medo rente aos
jardins e postes de candeeiros. Na sua opinião, a voz era a mesma. E
a melodia também era muito semelhante a uma outra que certa vez a
ouvira cantar distraída, ao fim de tarde, quando vinha de casa de
umas amigas.
Este
argumento de Dora incendiou as curiosidades cada vez mais amontoadas.
E a resposta veio da viúva. Que levantou as saias com uma prontidão
inesperada, pondo a descoberto as nádegas abauladas e alvas. Ao
mesmo tempo, batia desalmadamente no próprio rabo, com chapadas de
mão aberta.
A
velha garantia que o altar do seu corpo era mais sagrado e imbuído
de incensos do que uma píxide de hóstia benta no sacrário. E com a
filha, que lhe tinha seguido o exemplo, passava-se o mesmo. Se alguém
não acreditava, que o provasse ali mesmo, diante de todos. Caso
contrário não tinham o direito de andar a caluniar quem era honesto
e trabalhador. Até mesmo quando fora necessário ir a casa de Noé,
por diversas vezes, ela mesma se tinha sacrificado, já de propósito
para não dar oportunidade às más-línguas.
Mas
Dora não estava disposta a deixar-se vencer por uma qualquer
linguaruda esperta e atrevida. Por isso, atirou-se ao chão,
rebolando como uma doida e vomitando frases sem nexo.
A
multidão quase enlouquecia. Parte apoiava a viúva e a filha, parte
apoiava Dora. Gritavam todos ao mesmo tempo, como se o desfecho
daquela briga pudesse depender dos desejos de cada um. Ninguém se
entendia. Entre os que puxavam para um lado e para o outro, não
havia duas pessoas que pudessem ter o mesmo pensamento.
As
brigas entre gigantas tinham o condão de acirrar os ânimos da
assistência, ao contrário do que acontecia quando os dois monstros
da cidade se enfrentavam...
Enquanto
rebolava no chão, Dora queria dizer que era fiel ao marido. Mas não
se percebia qualquer palavra que saía da sua boca. E ela voltava a
rebolar sobre si mesma, querendo dizer a todos que fossem ver a
brancura das paredes de sua casa. Em vão. Só se ouviam gritos
desarticulados, sílabas soltas, gemidos e urros.
De
repente, deteve-se e tentou revelar aos presentes que mãos algumas
jamais a haviam tocado, a não ser as grossas e enferrujadas de
Júlio. Depois, ficou subitamente, imóvel e pálida. E pôs todos em
transe maior, ao encostar a face à terra batida do caminho. Após
uns segundos de auscultação, não conseguiu suster um ligeiro
grito. À distância, ouviam-se rumores de cascos. Rumores de cascos
em direcção à cidade.
Era
sempre assim. Quando alguém encostava o ouvido ao caminho era sinal
de que algo de terrível estava para acontecer. Por isso, o povo
recorria a este método como forma de prever o futuro.
Os
mais curiosos também se puseram à escuta no chão. Confirmaram o
perigo. E precipitaram-se na fuga.
Muitos
gigantes e gigantas foram com eles. Iam apinhados, aos encontrões,
como se tropeçando uns nos outros, antes que fosse tarde de mais.
XV
Eram
bestas desvairadas que vinham a galope na direcção da cidade.
Rumores de cascos, sob chicotes e bastões de centenas de polícias
armados de escudos e viseiras nos capacetes.
Parecia
uma invasão de bárbaros contra uma terra de anões assustados.
Àquela
hora da manhã, estava tudo fechado na cidade. E quem não estivera a
presenciar a briga das mulheres andava ensonado pelos cantos. As
tabernas ainda não tinham aberto as suas portas, o que significava
que ninguém estava preparado para enfrentar as forças da ordem.
Faltava
a força do álcool. Sem ela, os gigantes não tinham a visão limpa
sobre as hostes inimigas. Nem podiam rosnar de ódios com a língua
apertada entre os dentes e saltar como macacos dos poleiros das
árvores sobre as fardas de armaduras luzidias.
Tudo
indicava que aquela era a resposta da polícia à destruição dos
camiões. Mas o marido de Dora não parecia ser o único destinatário
das cavalgaduras. Porque fora da cidade corriam rumores de que os
gigantes estavam todos em revolta, sob a liderança de dois monstros
praticamente invencíveis.
Encegueirados
pelas névoas matinais, a massa da população só lentamente se foi
dando conta da chegada da polícia de choque. A má nova ia correndo
de boca em boca, através das gigantas que corriam a acordar os
maridos. Só que estes preferiam virar-se para o outro lado na cama,
sem dar importância ao que estava acontecendo. Era como se
enxotassem uma mosca teimosa da face.
As
mulheres refugiavam-se, então, por detrás das janelas, protegendo
os filhos de colo sobre as ancas e gritando para os outros que não
saíssem de casa.
A
coluna da polícia deteve a marcha a pouco menos de um quilómetro da
linha que estabelecia a divisão entre a cidade e o resto do mundo.
Tratava-se de preparar o ataque final ao reduto inimigo.
Só
que este, por enquanto, não dava sinais de si. Não havia gigantes
que fossem de encontro à satisfação dos objectivos da polícia.
A
cidade parecia um presépio àquela hora da manhã, com as casas
adormecidas e fechadas sobre si mesmas, expostas aos primeiros raios
do dia.
Apesar
da calma que reinava, a verdade é que tudo se ia decidir dentro de
pouco tempo, ali mesmo, quando os gigantes acordassem e vissem com os
seus próprios olhos o que estava a passar-se.
Até
porque os cavalos da polícia estavam sedentos de sangue. E os
guardas, armados até aos dentes, não pareciam dispostos a sair dali
sem fazerem justiça.
A
sensação que dava é que o ataque se realizaria, mesmo que não
aparecesse ninguém a dar o corpo ao manifesto. A polícia abriria
caminho sobre as casas desconjuntadas, espatifando tudo em redor, nem
que fosse apenas para destruir o que já estava destruído.
Foram
a correr chamar Júlio, que andava aos pontapés nas coisas que cada
vez mais impediam a sua circulação no interior da oficina.
Por
seu turno, Noé dormia a bom dormir. E foi preciso que três gigantes
o empurrassem da cama para o chão, a fim de o fazer abrir o primeiro
olho.
Tentaram
convencer os dois a juntarem-se para tentarem deter a polícia.
Noé
estava mais renitente. Procurou empurrar as responsabilidades para
Júlio.
Mas
disseram-lhe que não ficaria pedra sobre pedra na cidade se eles
deixassem avançar as forças da ordem.
Aquela
parecia ser a vingança total sobre a própria condição de um povo
escorraçado e maldito.
Ao
fim de quase uma hora de conversações, Júlio e Noé apareceram
lado a lado em frente à polícia. Não dirigiram palavra um ao
outro. Não se olharam sequer. Mas ali estavam, como duas torres,
prontos para o que fosse preciso. Por todas as razões e mais alguma,
aquele era um dia sem igual.
Atrás
dos dois mais poderosos símbolos da terra, via-se uma cidade inteira
de gigantes, gigantas e gigantinhos, todos agarrados uns aos outros,
como se à espera do Juízo Final.
Era
mais seguro estar ali, recolhido à sombra dos dois gigantes máximos,
do que estar escondido em casa, debaixo da cama, ou numa arrecadação
bolorenta.
Ante
o quadro de tantos gigantes agrupados na praça principal da cidade,
surgidos de repente, não se sabe como nem de onde, a própria
polícia teve dúvidas sobre o que se seguiria.
Mas
é evidente que as dúvidas depressa se dissiparam.
Os
gigantes gritavam para Júlio e Noé, que se encontravam à cabeça
da manifestação, incentivando-os a derrubar vinte e trinta cavalos
de uma vez!
Mas
os dois gigantes estavam mais concentrados do que nunca e nada
ouviam. Para eles, o importante era a concentração, única arma que
lhes restava.
Hoje,
porém, a uma distância razoável do acontecimento, pode afirmar-se
com razoável certeza que o facto de as tabernas estarem fechadas foi
determinante para o que sucedeu a seguir. O resultado nunca teria
sido o mesmo em circunstâncias normais. Porque o álcool tinha um
papel decisivo na afirmação dos gigantes. Privados dele, a cidade
era outra.
Sem
aviso prévio, ouviu-se um barulho de cascos enfurecidos sobre as
pedras cortantes da calçada.
Não
houve tempo para tentar saber o que estava acontecendo. Em menos de
um segundo, os gigantes da linha da frente, Júlio e Noé incluídos,
foram cobertos por uma nuvem de poeira que fazia lembrar um cogumelo
atómico.
Foi
um sinal de maldição. Porque se Júlio e Noé nem conseguiam
proteger-se de uma explosão de poeira, como seriam capazes de
resistir à força bruta de tantas cavalgaduras?
Sem
nada nas mãos, Noé foi o primeiro a destacar-se da massa de
gigantes, avançando de peito aberto contra os agressores.
A
ousadia chamou a atenção de um guarda, que ergueu o bastão, fez o
cavalo levantar as patas e dar-lhe um coice certeiro na fronte.
Noé
ficou a ver estrelas. Ainda se manteve de pé durante uns segundos
sem saber exactamente para onde cair, mas pouco depois, desabou como
um castelo ainda antes de o primeiro pó ter assentado.
Depois
da queda de Noé, nunca mais houve senso nas hostes defensivas.
Até
porque Júlio, que se encontrava perturbado pelas confusões
relacionadas com a aliança de Dora, foi rapidamente sobrevoado pela
calvagadura seguinte. E só não ficou com os ossos todos partidos,
porque era menos encorpado do que Noé, o que acabava por protegê-lo
em vez de o desfavorecer.
Desaparecidos
Júlio e Noé da frente de combate, a cidade ficou à mercê de quem
estivesse preparado para a atacar.
A
polícia não se fez rogada. Entrou pelas ruas com brilhos ferozes na
ponta das armas, partindo vidraças, arrombando portas de casas e
tabernas, destruindo bancos de jardim e postes de fios, atirando
granadas de gás para os esconderijos mais insuspeitos.
Os
gigantes pouco ou nenhuma reacção esboçavam. Do fundo dos seus
currais, atiravam aqui e acolá, uma ou outra pedra na direcção dos
olhos de um cavalo ou do traseiro de um polícia. Mas estavam longe
de impedir a continuação das derrocadas às mãos dos agentes, que
malhavam de tal forma em tudo o que lhes surgia pelas ventas, fosse
gigante, carroçaria de automóvel, fontanário ou imagem de santo,
ao ponto de deixarem a cidade num estado que fazia lembrar os
primórdios da sua construção, com tantas paredes desventradas e
vigas a descair por cima dos montes de pedregulhos no meio das ruas.
Os
guardas acabaram por dar consigo sozinhos, de olhos revirados para a
luz, sem vivalma contra quem combater. Todos os gigantes tinham
descido ao túnel de um grande silêncio, como nos casos das
aterradoras epidemias, ou dos acidentes nucleares, em que as
populações são dizimadas por um ar de morte invisível.
E
só depois de se ouvir a trepidação provocada pelo afastamento das
bestas é que vieram aqueles gritos medonhos de vozes em ruínas,
como acontece no minuto logo a seguir às grandes tragédias.
Mas
desta vez parecia que a dor vinha de mais fundo, de dentro da terra,
desde a pulsação do fogo, até à lembrança dos tempos em que
tinham chegado à cidade camiões, vindos de todas as partes, com
montes de gigantes lá dentro, ao fim de dias e noites de viagens
sobre urinas, desmaios, comida seca e lamentações de ardumes. A
diferença era que a história destes gigantes nunca havia sido
contada, apesar de ser tão verdadeira como outras por esse mundo
fora.
E
assim se fez uma cidade de piolhosos e miseráveis. Recordação após
recordação, esquecimento após esquecimento. Os malditos foram
abandonados à sua sorte e aos escombros infestados de maus cheiros e
sons ameaçadores.
Desaparecido
o último cavalo no horizonte, havia fumo negro sobre as casas
destelhadas, sinais de morte e de vida, de abismo e de construção.
O barulho dos seus cascos fazia lembrar o dia em que os primeiros
gigantes tinham chegado à cidade. Os primeiros de muitos outros que
viriam a seguir. Em tentativas de tudo recomeçar. Depois de tudo o
que se perdera, de tudo o que se desfizera.
XVI
Reconstruir
a cidade assemelhava-se à expectativa de erguer um presépio,
colocando casa sobre casa, musgo ao lado de musgo, ruela a seguir a
ruela. E a cidade refazia-se em Dezembro, mês dos grandes desacatos
e da carga policial como nunca antes se vira em parte alguma.
Os
gigantes empenhavam-se na forma de tratar as mazelas das casas e as
nódoas negras sobre os corpos que tinham sido vítimas dos golpes
mais duros. Até a fita de gaze no queixo de um deles fazia lembrar a
barbicha de um dos reis magos que seguia a estrela para Belém. Os
postes de luz eram recolocados nos sítios e iluminavam as ruas com
uma nostalgia tão apreciada como se fosse Natal.
Muita
gente voltava a aglomerar-se junto à casa de Noé. Mesmo de cabeça
enfaixada pelo coice medonho que levara na refrega com a polícia, o
rival de Júlio atendia pedidos, agora, a qualquer momento do dia ou
da noite, com vista à cedência de avultados empréstimos, sem os
quais a cidade não renasceria das cinzas.
Passaram-se
semanas e meses, com empurrões e escaramuças, zangas e atritos, nas
bichas intermináveis, à espera de vez na casa onde se resolviam
quase todos os empréstimos financeiros.
Até
que um novo confronto entre Júlio e Noé entrou para a história.
Noé achou que Júlio estava a querer roubar-lhe a clientela porque
sempre ia fazendo uns arranjos fortuitos aqui e acolá, a pedido
deste e daquele. Apesar das demoras e esquecimentos, Júlio acabava
por ir dando uns jeitos, em troca de uns vapores e encharcos.
Noé
considerou que os seus financiamentos estavam a ser prejudicados e
foi ajustar contas com o rival. Como sempre, não chegou a haver
conversa entre ambos. Mas sim uma espécie de terramoto que veio
abalar as construções renovadas. A briga terminou com Noé de
garganta apertada num cabo eléctrico e Júlio pendurado por uma
orelha que por pouco não virou troféu nas mãos do inimigo.
Seguiu-se
um período de curas e graças. A cidade estava mergulhada num
universo de intimidades que vinha de dentro das casas estender-se
para as ruas, como as penugens soltas dos pássaros boiando em aromas
silvestres rente aos olfactos. A cidade parecia ainda uma floresta
nova a despontar os galhos por entre as raízes conturbadas da
anterior devastação. Os animais procuravam os antigos territórios,
estendendo-se ao sol em roncos desmazelados. Mas o sossego não podia
durar muito na cidade dos gigantes. Haveria sempre alguma coisa para
afligir os corações.
Começavam
a ouvir-se as primeiras vozes críticas em relação aos negócios de
Noé. Contas velhas que há muito estariam saldadas e que na verdade
não estavam. Os avisos de pagamento continuavam a chegar às caixas
de correio dos gigantes, que julgavam aqueles negócios já
liquidados.
Levantou-se
um sururu pela cidade. Alguns gigantes foram bater à porta de Noé,
que desde há vários dias não aparecia em casa. E quando o viam na
taberna ele fingia que não conhecia as pessoas, dando-se ares de
homem importante, que ficava acima dos rumores.
Agora,
então, começava a perceber-se a forma como Noé enriquecera. Ao
ponto de uma vez ter queimado uma nota de dez contos nas barbas de
toda a gente que se encontrava na taberna.
O
cerco apertava-se em torno de Noé. Mas ele negava tudo.
Havia
quem ameaçasse fazer explodir a sua casa pelos ares. Só que o reles
desatava a rir, espantando as críticas com baforadas de escárnio.
Mesmo
assim, havia vozes que comentavam a alguma distância que ele tinha
os dias contados e que alguém lhe faria nova espera, desta vez, sem
remissão.
Falava-se
que a viúva, finalmente embarcada com a filha para o estrangeiro, se
oferecera para lhe depositar grandes quantias em bancos de terras
distantes. O que explicava as gargalhadas com que Noé respondia às
críticas que lhe faziam. Mas também se dizia que a mesma viúva não
perderia tempo em passar esses valores para a sua conta pessoal. E
que, por isso, a riqueza de Noé estava nas últimas.
Noé
passeava-se com grande descaro e arrogância, pelas ruas da cidade.
Sentava-se desde a manhã na taberna e só de lá saía quando era
noite cerrada. Por causa das dúvidas nos negócios, os gigantes
tinham deixado de lhe fazer bicha à porta.
Mais
espertalhão do que nunca, Noé tinha todo o tempo disponível para
se embebedar. E, apesar de tudo, o tempo não lhe era totalmente
desfavorável.
Por
isso, ele não deixou escapar a oportunidade para resolver o assunto
da carta da mãe que estava para chegar e que nunca mais chegava.
Noé
sentou-se à mesa dos seus enegrecidos papéis. Debruçou-se sobre
uma folha mais limpa, encontrou a sua melhor caneta e fez uma mistura
de tinta com vários tons, a fim de que ela parecesse de origem
divina. O importante era que a carta provocasse uma impressão
excepcional junto de quem a lesse.
Convencido
de que se preparava para começar uma obra inolvidável, Noé iniciou
a escrita com o maior cuidado, não fosse a mão escorregar para os
termos errados. Pôs-se a rabiscar os contornos das letras sobre a
brancura do papel. Quem visse a sua mão poderosíssima agarrada à
delicadeza da pena não teria dúvidas sobre a origem divina daquela
carta.
Enquanto
escrevia, notava-se uma baba de fio que se desprendia do lábio
inferior de Noé. Este era um pormenor à primeira vista sem alcance,
porém em tudo idêntico à imagem do Criador que algumas estampas
ainda se encarregavam de preservar.
Depois,
a saliva espessa tombava sobre a folha, como um sinal de letra
esforçada, e o gigante rasgava o papel, para começar de novo outra
página.
De
tanto se babar, teve que escrever muitas folhas em busca da
perfeição.
Para
ser o homem mais forte da cidade, tinha que conseguir terminar a
carta sem uma nódoa.
XVII
Dora
ganhara o hábito de ficar na cama todo o dia. Queixava-se de
reumatismo no pescoço, de pontadas na zona direita do ventre, de
descidas de tensão, de picadas nos pés.
Por
isso, a casa de Júlio passou a ser frequentemente visitada por
gigantas curiosas que vinham inteirar-se do estado de saúde de Dora.
Mas
ninguém compreendia as suas queixas estranhas porque, nos últimos
tempos, Dora andava com um excelente aspecto.
Em
contradição com a sua aparência, no entanto, e às horas menos
previsíveis, às três da madrugada, ou às cindo da tarde, Dora
punha-se a berrar durante tempos sem fim.
Em
seu redor, ficavam os filhos e por vezes o marido, com expressões de
quem esperava vê-la agonizar de um momento para o outro.
Ninguém
se atrevia a ir à cidade mais próxima chamar um médico. Até
porque os gigantes votavam ao maior desprezo – um desprezo
irreversível e total – os avanços da ciência e da medicina.
Assim,
Dora piorava a olhos vistos, com a balbúrdia das gigantas que a
vinham ver e que pouco ou nenhum ar deixavam dentro do quarto. O que
elas faziam era rezar, com vozes tremelicantes de súplica.
Certo
dia, contudo, alguém sugeriu que se chamasse um gigante dotado de
poderosos meios de cura para insondáveis males do género.
Ao
ouvir a ideia, Dora refreou as queixas, reduzindo-as a uma série de
gemidos monocórdicos. Não se sabia se aquela súbita mudança
significava acordo ou desacordo com a sugestão.
Pelo
sim, pelo não, veio o gigante curandeiro ver o que se passava com a
mulher de Júlio.
E
logo que ele deu entrada no quarto, Dora aumentou o ritmo das
lamúrias.
Ele
abeirou-se dela, procurando o melhor ângulo de visão. A seguir, fez
sinal para que se fechasse a janela e saíssem todos do quarto, desde
o filho mais pequeno ao próprio Júlio, excepto ele. O recolhimento
absoluto parecia ser condição fundamental para o sucesso da
operação.
Trancada
a porta, ficaram os gigantes aglomerados do lado de fora, a ouvir os
gemidos de Dora no lado de dentro.
A
espera prolongou-se sem notícias de melhoras. Mas a voz da doente
continuava a chegar aos ouvidos dos gigantes, só que agora
exprimindo uma espécie de dor mais fina em soluços progressivamente
acelerados. Como se o curandeiro se tivesse posto a untar de mel
insondáveis raspões na carne atormentada de Dora.
Júlio
estava fora de si e não queria esperar nem mais um minuto. Ameaçava
meter a porta dentro. Insistia em saber o que estavam a fazer à
mulher, mas ninguém lhe adiantava nada.
As
outras gigantas procuravam acalmá-lo, dizendo que era mesmo assim,
que ele tinha que ter paciência, que Dora ia melhorar. Havia doenças
difíceis de detectar, por isso era preciso ser paciente.
Aconselharam-no a ir dar um passeio. Quando a consulta terminasse,
chamá-lo-iam, para que ele viesse então reclinar-se à beira da
cama, onde havia de encontrar Dora completamente recuperada.
Júlio
seguiu os conselhos das gigantas mais experientes. E afastou-se,
cabisbaixo, enquanto ia coçando a orelha envolta em adesivos e
algodões desde a última briga com Noé.
Logo
a seguir, as gigantas colaram prontamente os ouvidos à porta do
quarto de Dora, para ouvirem melhor o que se passava. Queriam
consolar os ouvidos naquilo que elas imaginavam ser as tumultuosas
labaredas que o curandeiro haviam acendido sobre a cama da doente.
Era
tal a euforia de ouvir ou ver alguma coisa no quarto que outras
gigantas ameaçavam ficar doentes também se não as deixassem
aproximar da porta!
O
casebre de Júlio estremecia de barulhos, gemidos, empurrões,
apertos, curiosidades. E a certa altura já não se percebia se o que
se ouvia era o barulho dos lençóis revoltos e da cama a ranger no
quarto de Dora ou se era o ruído inquieto das saias e xailes a que
as gigantas nervosas se agarravam no auge da excitação. Todas
queriam ouvir, ao mesmo tempo, as santas bênçãos da cura.
Assim,
não se entendia bem o que podia estar, realmente, a acontecer. Entre
risadas e galhofas das mais atiradiças, empurrões de trás, para a
frente e para os lados. Cada uma procurava escutar os pormenores de
soluços e gritos misturados com gargalhadas atrevidas, lá dentro,
ou cá fora.
Não
havendo maneira de conter as curiosidades, que eram cada vez maiores,
e para que a casa de Júlio não desabasse a qualquer momento, ficou
combinado organizar-se uma bicha de gigantas. A fim de que todas
pudessem encostar o ouvido à porta e assim descodificar os sinais
que lhes chegassem.
Todavia,
nem deste modo se conseguiu impor a ordem. As mulheres não cabiam em
si de excessos. As que estavam atrás metiam os dedos nas nádegas
das da frente e estas não acertavam no buraco da fechadura nem nas
frinchas da porta. O que elas queriam eram estar coladas
interminavelmente à porta que as separava da verdade. Mas eram
pressionadas pelas outras, que reclamavam por nunca mais chegar a sua
vez. Havia uma que se queixava de ardume nos olhos e uma outra que
garantia ter dores de ouvidos. Só para que as deixassem ver. As que
saíam da bicha, por já terem espreitado, voltavam para a cauda da
mesma, na esperança de terem nova oportunidade.
A
verdade é que já ninguém se interessava pelo sofrimento de Dora.
Já ninguém queria saber se ela corria riscos de vida. Ou se estava
de perfeita saúde.
No
futuro, de resto, Dora teimaria em cair de cama muitas outras vezes,
sempre com os mesmos males, com a mesma doença, cujos desígnios se
mantinham desconhecidos. E era sempre visitada pelo gigante
curandeiro.
Todas
as vezes que aparecia em casa de Júlio, o curandeiro desfazia-se em
amabilidades e vénias, assegurando que acabaria por descobrir o mal
que apoquentava Dora. Ou levantando a hipótese de os sintomas,
daquela vez, serem ligeiramente diferentes dos anteriores. Aquando da
última crise, Dora não tivera febre nem enxaquecas. Só picadas nas
costas e nos rins. E antes não tivera picadas nas costas, mas sim
dores na garganta e nos tornozelos.
Sempre
que o curandeiro ia a casa de Dora, as gigantas expulsavam Júlio,
para terem liberdade de movimentos na espionagem a que se dedicavam
através das frinchas da porta. Mais tarde, depois de terminada a
longa consulta, mandavam-no chamar para que ele se entendesse com o
gigante que estivera a dar assistência à mulher.
Júlio
sentava-se, então, ao lado de Dora, já restabelecida, já de fronte
desanuviada, que se punha a explicar-lhe mais aquele milagre do sábio
curandeiro.
A
giganta garantia que só de olhá-la, ele a pusera boa. O milagreiro
aparecera no crucial momento em que Dora estava prestes a alagar-se
nas águas da morte. Ela já sentia as ondas fúnebres a bater-lhe
nas rochas dos tornozelos, como se quisessem arrastá-la na maré
cheia, mas de repente surgira o curandeiro, santo homem, que a
libertara das garras da morte.
O
poder descritivo da mulher arrepiava a coluna de qualquer gigante.
Júlio tinha dificuldades em acreditar nas suas palavras. Mas sempre
que ouvia falar em milagres ficava arrepiado e deprimido.
XVIII
Sem
perder tempo com a leitura da carta, Noé foi a correr para a taberna
mostrar aos gigantes a boa nova que lhe chegara do Céu.
A
carta dizia, sem hesitações, nem confusões, que ele era o homem
mais forte da cidade!
Além
disso, o mesmo papel fazia referência à sua honestidade. Afirmava
que se tratava de uma pessoa merecedora do maior respeito e dos
maiores elogios. Este acrescento oportuno visava branquear a sua
imagem, que ficara irremediavelmente prejudicada desde que se soubera
das suas contas trapaceiras com muitos gigantes.
Mas
Noé já tinha resolvido o problema, deixando-o cansar nas bocas dos
gigantes. Ao fim de uns tempos, a necessidade de novas notícias
fizera passar o assunto ao esquecimento. Tanto que a carta só viera
tocar desnecessariamente numa questão melindrosa.
Também
convinha aos gigantes lesados por Noé que o assunto não voltasse a
ser notícia de primeira página. Para que, mais dia menos dia, o
caso pudesse ser solucionado à sua maneira, sem atrair demasiado as
atenções.
Bem
atarracados de álcool, umas dezenas de gigantes haviam de desfazer,
peça por peça, a casa do aldrabão. Fá-lo-iam, contudo, numa
altura em que o gigante se encontrasse fora. Porque nunca se sabia
até onde podia chegar a sua força. A avaliar pelas brigas entre os
dois homens mais fortes da cidade, cada um deles valia em músculos
cerca de vinte gigantes de estatura média.
Entretanto,
Noé tinha chegado à taberna para mostrar a carta, mas ao contrário
do que habitualmente acontecia, ninguém lá se encontrava.
O
taberneiro era a única alma presente. Entretinha-se a bufar e
ressonar, simultaneamente, com a fronte caída sobre as mãos em cima
do balcão. Dormia como um caracol.
Os
jogos estavam espalhados em cima das mesas e a imobilidade das suas
peças não era lá grande presságio.
O
gigante deu um murro mesmo ao pé do ouvido do taberneiro adormecido
e fê-lo acordar com os olhos em volta, à procura de uma boca de
canhão.
Ao
ver a exaltação de Noé, com as pupilas em bico, enfiou a cabeça
dentro de um armário enquanto gritava que não sabia de nada, que
não estava metido no caso, que nada tinha a ver com o assunto, que
Noé tivesse piedade da sua alma.
Noé
não percebeu exactamente onde queria ele chegar. Por ser lento de
ideias, pegou no taberneiro pelo cachaço e encostou-o à parede, a
fim de que ele pudesse ler com toda a concentração a carta
supostamente divina que tinha chegado à sua caixa de correio.
O
impacto da novidade foi tal que o taberneiro se desmoronou,
estatelando-se ao comprido no chão. Só nessa altura se verificou
que a carta estava de pernas para o ar. Mas o taberneiro desmaiou
ainda antes de ter tempo de a ler. Apagou-se com a imagem de uma
folha branca a esvoaçar diante dos olhos. Como uma pomba atravessada
de bala.
A
atenção de Noé, contudo, depressa foi chamada para outras
paragens. Da zona de sua casa vinha uma balbúrdia gigantesca. Como
se alguém estivesse a virá-la do avesso.
Noé
desatou a correr em direcção ao que ouvia, fazendo-se anunciar com
a estrepitosa cavalgada dos seus passos.
Ao
atingir a meta, não encontrou os autores da tramóia. Só a casa
despejada de móveis e papéis de contas. Tinham-lhe levado tudo. Até
o penico e o candeeiro que herdara da mãe. Nem um recibo ficara para
mostra.
A
partir desse dia, restava-lhe a dureza do quarto para dormir. No
chão. O grosso do seu dinheiro tinha sido entregue à viúva, que
partira para o estrangeiro e que certamente o teria depositado numa
conta em seu nome. Esta ingenuidade de Noé deixou-o quase tão
desamparado como no dia em que foi mandado nu para casa.
Noé
sentiu-se invadido por uma ressonância de vazios ancestrais e
disformes, onde tudo deixava de ser proporcional.
Com
a cabeça apoiada na inseparável caixa de cervejas, enterrou-se na
memória longínqua das tardes.
Em
outros tempos, ele e a mãe passavam juntos todas as horas do dia,
debruçados na janela lado a lado, como marido e mulher. Teciam
comentários aos que desciam e subiam a rua, casais monótonos sem
nada para dizerem um ao outro, pais com os filhos pela mão, velhos
trôpegos à espera de morrer, apreciadores de montras, invejosos,
curiosos, de tudo isto um pouco se fazia a vida.
Mas
quem passava pela rua também não conseguia esconder sorrisos
amarelos ante a pasmaceira e aparente felicidade que Noé e a mãe
gozavam na sua pose de janela. Não lhes dessem mais nada. Só
aquelas horas, todos os dias, mãe e filho, lado a lado, vendo o
mundo deslizar diante dos olhos.
A
maravilha desse tempo foi interrompida no dia em que apareceu uma
safada com intenções explícitas de se unir matrimonialmente a Noé.
Ao passar na rua, parava e punha-se de conversa com o gigante e a
mãe, dizendo claramente que gostava muito dele, que só pensava
nele, que só o queria a ele, que haviam de unir as suas vidas para o
bem de todos.
Atarantado,
Noé nem sabia que responder. Sentia-se muito bem ao lado da mãe,
por isso não tinha necessidade de outra. E estranhava que pudesse
haver alguém a fazer concorrência à própria mãe.
Mas
a giganta tanto insistiu que foi mesmo a mãe de Noé que o
incentivou a começar o namoro. Ela não viveria sempre e aquela era
uma maneira de ele não ficar desamparado, um dia, que ela morresse.
Apesar
de ter sido um namoro conturbado, a data do casamento não sofreu
alteração.
Mas
a união não se manteve por muito tempo. Porque no próprio dia do
enlace, Noé abandonou a esposa, com o pretexto de uns cortinados que
ela queria lá em casa e ele não.
Fugiu
da cama da legítima esposa e foi aninhar-se nos lençóis quentes da
mãe, onde se manteve obediente e fiel até ao último respiro dela.
Foi uma união tão duradoura e sólida que, anos mais tarde, o
gigante não resistiu à separação que a morte estabeleceu entre
ambos. Arrombou a porta do cemitério, abriu uma cova ao lado daquela
onde jazia o amor da sua vida e deixou-se cair dentro dela, pedindo
alto e bom som que não o tirassem dali.
Data
dessa altura a expulsão de Noé para a cidade em que milhares de
gigantes fermentavam num abandono de ódio sem limites. Fora esse o
verdadeiro motivo da sua deportação e não aquele que contara aos
amigos. Até ser expulso para a cidade dos monstros, nunca tinha
ouvido falar em Júlio.
Noé
tornara-se, então, após muitas peripécias de lutas e bebedeiras,
aquela montanha de carne estendida na noite. Todo ele parecia um
túmulo desprovido de conforto ou de qualquer lápide que esmiuçasse
o filho da mãe que ele era.
Dava
a ideia de estar ali a mais. Não havia presente do indicativo nos
seus olhos. A seu lado, faltava a memória de outro corpo. Tinha sido
despojado de tudo. Ao ponto de quase ser preciso apenas retirá-lo
das tábuas em que dormia, como nas de um caixão, para libertar a
casa daquele excremento que tornava o ar escasso.
Quando
tudo indicava que agora Noé estava mais seguro do que nunca, depois
de ter sido espoliado de todos os bens que tinha em casa,
aconteceu-lhe o pior. Dois homens, de estatura média, vestidos de
gabardina e chapéu, entraram na sua residência por uma das janelas
das traseiras e anularam-no rapidamente através de uma anestesia que
lhe injectaram no braço. Noé ainda olhou para trás a ver o que se
passava quando ouviu um ranger de soalho, mas já não foi a tempo de
se safar. Tentou afastar a agulha, em vão. Em menos de um segundo,
tinha os pés presos e era arrastado ao longo da escuridão para fora
da cidade.
Noé
estava entregue ao vazio, ao desconhecido, à ignorância. O seu
corpo descomandado não tinha destino. As forças dormiam-lhe,
enquanto a sua sobrevivência navegava ao sabor das ondas.
XIX
As
doenças de Dora tornaram-se rotineiras. Desistiu das lavagens à
casa. A sua residência piorou de aspecto.
Os
filhos estavam cada vez maiores, o que fazia com que houvesse cada
vez menos espaço disponível dentro da habitação.
Júlio
passava agora mais tempo na oficina. Tinha maior número de
encomendas do que o habitual. E sempre era preciso ir fazendo pela
vida. Acontecia-lhe, por vezes, estar a consertar uma peça qualquer
e ter de repente uma ideia para um projecto novo. Então, dava outro
destino à peça e ficava resolvido o assunto.
Certo
dia, porém, não houve imaginação capaz de solucionar o problema
que se lhe deparou.
Estava
ele a soldar uma velha trempe, quando lhe pareceu ouvir ganidos por
detrás de um monte de bugigangas.
Suspendeu
a tarefa que tinha em mãos e foi ver o que estava a acontecer.
Deu
de caras com três rostos de bebé a olhá-lo de dentro de um armário
embolorecido.
Perplexo,
Júlio aproximou-se para observar melhor. Mas parou atónito. Os
bebés desataram a fugir e foram esconder-se debaixo de uma mesa. Os
seus corpos não eram humanos. Andavam sobre quatro patas e sacudiam
a cauda como os cães.
A
mãe dos três bichos, a cadela de Júlio, estava ali mais ao lado,
estendida sobre o chão, com os olhos colados à sombra das
pálpebras.
O
gigante debruçou-se sobre o animal, para verificar o estado em que
se encontrava. Assistiu ao seu último suspiro. E afastou-se por não
suportar a dor.
Os
três cães com cabeças humanas vieram abrigar-se aos pés do
gigante, lambendo-lhe as botas, como se à procura de teta.
Mas
à semelhança do que fazia à mãe quando ela vinha consolá-lo
sobre o degrau de pedra, ele sacudiu os cachorros para longe da
vista. Não os tolerava. Muito menos ali à volta, assim
despudoradamente.
Júlio
sentiu um estrondo no peito logo que viu os três cachorros com
rostos humanos. E o estrondo não passou. Manteve-se ao mesmo nível
do impacto inicial. Depois, viu morrer a cadela. E a dimensão do
desgosto aumentou.
Pôs-se
a andar às voltas, a ver se conseguia respirar melhor. Encostou-se a
uma parede. De frente e de costas. Em vão. Sentia o coração
prestes a rebentar. O coração do homem mais forte da cidade.
Nunca
tinha vivido um momento tão aflitivo. O seu maior adversário
poderia estar à beira de realizar o maior sonho da sua vida. O único
sonho. Podia não morrer, agora, naquele instante exacto, mas a
verdade é que Júlio dificilmente recuperaria de um golpe daqueles.
É
que, ao olhar para os três cachorros, tivera a nítida sensação de
se estar a ver a si mesmo ao espelho. Um espelho que triplicava a
imagem. O que não admirava, tendo em conta a quantidade de álcool
que ingerira naquele dia.
O
pior era a semelhança física entre ele e os cachorros. Quando
pensava nisso, o estrondo que sentia no peito aumentava de
intensidade. Aumentava sempre. A um ponto em que o coração quase
lhe saltava do sítio.
Não
havia muitas soluções para aquele imbróglio. Júlio não podia
perder tempo com análises de fundo ao acontecimento.
Por
isso, antes que alguém soubesse do fenómeno, o gigante foi buscar
um saco, onde meteu a cadela e os três cachorros. Só que eles se
escapavam, facilmente, por entre as suas mãos, pondo-se a correr nos
labirintos das quinquilharias. Contornavam o cerco urdido pelo
gigante e apareciam atrás dele com notável agilidade,
surpreendendo-o a todo o momento.
No
meio da confusão que se gerou, tombaram vidros e relógios de corda
a buzinar, peças de carros e sirenes alarmantes, badalos de sinos e
campainhas eléctricas, apitos, despertadores de orelhas,
frigoríficos, panelas.
Para
ver melhor onde se tinham escondido os cachorros, Júlio acendeu
lâmpadas, deitou-se no chão, rebolou sobre lama e objectos partidos
na tentativa de os prender.
Foi
um penar para os meter junto ao cadáver da mãe dentro do saco. Mas
ao fim de quase uma hora, o gigante dominou os três demónios em
pessoa, atordoou-os com umas pancadas na cabeça e pô-los dentro do
saco, às costas, para ir dar um passeio até às matas vizinhas que
circundavam a cidade.
Abriu
uma cova e enterrou tudo. A função da morte era isso mesmo. Sufocar
os seres vivos sob a terra húmida.
Porém,
até realizar os seus desígnios, até chegar às matas que cresciam
à volta da cidade, onde havia de enterrar a cadela e os três filhos
com rostos de gente, Júlio teria ainda que percorrer as ruas por
entre as casas, com o saco às costas, e passar diante dos olhos das
mulheres que espreitavam por detrás das janelas, especulando
intimamente sobre o que o gigante levava no saco.
Os
homens encostados às paredes das tabernas haviam de mirá-lo,
interrogativos, ao vê-lo passar. E congeminariam ideias sobre o rumo
que levaria Júlio naquela tarde, pois ele passava diante das
tabernas e não se detinha para beber. Parecia que levava ouro no
saco.
Em
qualquer caso, sobre o que levava no saco, ou não, a verdade é que
levava o peso de todas as suas brigas com Noé, levava as marcas de
fivela estampadas no corpo de Dora, levava suspeitas de doenças
estranhas por parte da mulher, levava as noites de sonhos calorosos
em que se rebolava pelo quarto sobre os gigantinhos para se quedar no
cais de uma filha mais sedenta que costumava esperá-lo acordada até
altas horas da madrugada, levava a oficina de tanta velharia
enferrujada, levava o ódio ao mundo e a si mesmo..
Mas
é claro que tudo isto só procurava encobrir dos olhares a maior
vergonha de Júlio, que era a sua responsabilidade pela vida de três
malditos cachorros com cara de gente.
E
se julgam que o gigante levava só isso com ele para enterrar nas
matas que rodeavam a cidade estão muito longe da verdade.
Ele
levava isso e muito mais. Levava anos e anos de bebida com
aguardentes, levava as íntimas recusas de Dora na cama, levava toda
a ignorância sobre o seu passado, levava a carta em que estava
escrito ser Noé o mais forte da cidade (e este peso não era dos
menores), levava humilhações desde o tempo em que nascera com o
defeito de ser como era, levava planos de vingança nas tácticas de
lutas que se deram e dariam no futuro, levava cheiros de borracha
queimada com brilhos de cargas policiais diante das ventas. E levava
ainda a imundice da casa, e as gretas por onde entrava o mau tempo,
por isso o monstro muitas vezes tinha de dormir sob plásticos, ou
guarda-chuvas abertos, que o resguardassem a ele e aos filhos, das
grossas bátegas que caíam durante noites consecutivas. Júlio
levava muita coisa, levava os vinte militares de metralhadoras
apontadas à sua cabeça no carro blindado em que fora conduzido para
aquela cidade de fezes. Separaram-no da família (que ele demorou
anos a reencontrar) e escorraçaram-no para o fim do mundo. Júlio
levava dívidas e dúvidas, levava o passado e o futuro, levava a sua
história, levava isso e mais. Já que tanto queriam saber, aí
tinham.
Uma
vez aberta a cova, Júlio atirou o saco para as profundezas, sentindo
como se parte dele fosse a enterrar naquele momento.
Desatou
a tapar a cova com a maior rapidez, mas após cada pazada, os cães
respondiam pondo de fora as cabeças humanas. Desatinado, Júlio
praguejava, exigia obediência. Depois, atirava pedras aos cachorros,
que ganiam e ladravam, esquivando-se aos ataques. Quanto mais terra o
gigante lhes atirava para cima, mais saltos e gemidos eles davam,
mais se contorciam e opunham ao sufoco.
Mas
Júlio acabou por vencer a luta. E impôs o silêncio sobre a cova
disfarçada por umas ervas rasteiras que passaram a cobrir a maldição
do seu acto.
Terminado
o enterro, preparava-se o monstro para regressar ao alívio da
cidade, quando se ouviu, de novo, o latir dos cães, que tinham
conseguido libertar as cabeças acima do nível da sepultura.
Vistas
as faces dos animais naquela euforia de berros esganiçados, o crime
de Júlio parecia maior. Os três cachorros cabeceavam como abjectos
mosquitos desnorteados dentro do Verão.
O
gigante decidiu acabar com o problema de uma vez por todas. Voltou ao
local onde os três bichos ganiam de aflição e espezinhou os seus
pequenos crânios com as botas que trazia calçadas. A seguir,
completou o trabalho, martelando-lhes as cabeças com a quina da pá.
Para esconder o crime, agarrou meia-dúzia de pedregulhos e deixou-os
cair sobre os cadáveres de cérebros esmagados.
XX
Depois
do assalto a casa de Noé, passou a saber-se exactamente como ele
procedera para enganar os gigantes que recorriam ao seu auxílio
financeiro.
Se
alguém precisava de cinquenta contos, ele fazia uma letra de
quinhentos e embolsava a diferença. O pagamento da totalidade da
quantia ficava a cargo de quem pedia. Se alguém queria duzentos
contos, ele assentava dois mil. Uma questão de acrescentar um zero à
série de números. E assim por diante.
Até
que um dia, começaram a circular os primeiros rumores acerca da
falcatrua. De janela em janela, de porta em porta, de esquina em
esquina, nas tabernas.
Havia
quem não acreditasse, quem dissesse que tal era impossível, que Noé
nunca se atreveria a tanto. E havia quem pusesse as mãos no fogo
sobre a veracidade da história. Para que não restassem dúvidas, um
grupo de gigantes decidira assaltar a casa de Noé. E tirara tudo a
limpo.
A
seguir, Noé levara um sumiço, depois de o terem anestesiado à
falsa fé. Mas, independentemente do que tivesse acontecido, sabia-se
que um gigante da sua envergadura não demoraria muito tempo a
regressar à cidade.
Falar
em alguém é torná-lo, de alguma forma, real. Como se as letras que
compõem o nome da pessoa constituíssem um isco que a atraísse
inapelavelmente.
Foi
o que aconteceu. Estávamos a falar em Noé e ele apareceu no
horizonte, quando Júlio vinha precisamente a meio caminho entre a
cidade e a mata onde enterrara os cães.
Noé
surgiu em grandes passadas, relinchando como uma besta espavorida de
garras afiadas em direcção ao rival do seu ódio supremo.
A
impetuosidade que trazia era tal que bateu de cegueira contra uma
árvore mais alta.
Contudo,
não perdeu o tino. Depressa se recompôs. Abraçou-se à árvore,
apertou a língua entre os dentes, puxou o tronco para si, arrancou a
massa de terra que veio colada às raízes e elevou no ar a sua lança
desafiadora e temível.
Logo
a seguir, correu para Júlio (como se o principal adversário fora a
causa das desgraças que lhe vinham sucedendo) e lançou o tronco na
sua direcção com toda a força de que era capaz.
Júlio
pensava ainda nos cachorros esmagados sob as pedras. Mas nem por isso
foi apanhado de surpresa.
Quando
o tronco desferido por Noé vinha rasgando os ares, já ele estudava
o melhor ângulo a partir do qual travaria sem perigo a arma de
ataque desferida pelo adversário.
Aquela
seria a maior luta de sempre entre os dois gigantes. A sua prova de
músculos atingiria o limiar do descritível e adquiriria proporções
capazes de assustar a própria Natureza.
Os
insultos entre os dois eram tais que até as nuvens se deixavam
afastar pelo sopro das suas bocarras salivosas.
Ninguém
queria ver o que se passaria a seguir. Havia quem garantisse que os
troncos se fendiam só de os gigantes lhes tocarem nas cascas. Podia
imaginar-se, então, o que estava para vir.
Enquanto
Júlio observava a aproximação do tronco lançado por Noé como um
cabo de vassoura de tamanho nunca visto e que levava o seu peito por
alvo, teve tempo de pensar e reagir da maneira mais eficaz. Segurou a
árvore voadora pelas raízes, como em outras ocasiões fizera ao
cabelo de Dora, amortecendo o poder do embate, rodopiou sobre si
mesmo e devolveu o objecto agressor ao antagonista. Logo a seguir,
aproveitou para seguir manhosamente o trajecto da árvore, procurando
apanhar Noé distraído a olhar para o tronco, enquanto ele, Júlio,
avançava como uma flecha rumo ao adversário na tentativa de o
atingir antes que o tronco lá chegasse.
Quando
Júlio chegou junto de Noé, este ainda congeminava raciocínios
sobre o provável destino da árvore...
Por
isso, foi apanhado de chofre por uma cabeçada que Júlio lhe deu no
estômago.
O
choque derrubou os dois gigantes. Um para trás, o outro para diante.
Júlio e Noé agarraram-se e espremeram-se com todas as suas forças,
esmurraram-se, pontapearam-se, venceram quilómetros de mata. Sempre
no meio de urros escabrosos que prometiam vingança sobre as razões
com que mutuamente se acusavam desde tempos remotos.
Tanto
rolaram e se espancaram que foram bater, por entre uma aparatosa
confusão de membros feridos e arranhados, contra as casas que
ficavam no último reduto da cidade.
A
destruição de alguns muros provocou celeuma e fez com que perto de
vinte gigantas tivessem vindo barafustar para a rua.
Era
difícil dizer se as gigantas faziam tamanho berreiro por condenarem
o regresso de Noé, por temerem o desfecho de mais aquela luta entre
os dois maiores colossos da cidade, ou apenas por deplorarem o estado
em que haviam ficado as suas casas.
Pelo
sim, pelo não, os gigantes Inverteram a marcha da briga e foram
parar de novo ao matagal, onde não faltavam árvores para arrancar e
atirar contra o inimigo.
Depois
de terem recorrido a todos os truques para tentar derrubar-se,
decidiram os dois ao mesmo tempo atirar mãos cheias de terra aos
olhos um do outro.
Isto
fez com que se separassem imediatamente, encegueirados, indo cada um
para seu lado ver o que podia fazer para se salvar. Mas nem assim a
briga acabou.
Porque
os gigantes puseram-se a rastejar às apalpadelas, sem verem nada,
ora próximos, ora distantes, de costas um para o outro, de frente.
Até
que Júlio detectou o monte de pedras sob o qual enterrara os cães
com cabeças de gente e o inimigo teve a sorte de encontrar uma
parede esborralhada.
Daí,
começou uma chuva de arremessos contra a zona onde cada gigante
imaginava estar o outro.
Foi
uma luta de previsão e cálculo auditivo. Mas quase todas as pedras
passavam ao lado do alvo porque os gigantes não estavam habituados a
enfrentar-se naquelas circunstâncias.
As
pedras espalhavam-se em inúmeras direcções. E em vez de os
arremessos se irem aperfeiçoando à medida que aumentavam de número,
pelo contrário, perdiam-se cada vez mais facilmente, devido à
distância, à falta de jeito e à cegueira de cada um dos gigantes.
Mas
também não estava posta de parte a hipótese de duas pedras
colidirem no ar, indo o ricochete de cada uma delas ferir o gigante
que originalmente a atirara.
Como
se acompanhando o pensamento deste livro, Júlio abraçou uma pedra
maior, ainda com restos de cão colados às rugosidades, enquanto Noé
pegou na mais pesada que encontrou à mão.
Ambos
nada viam em redor, devido à cegueira provocada pelo pó que se lhes
havia acumulado nas retinas. Separava-os uma reles dúzia de metros.
Mas tinham uma total falta de noção das distâncias.
Lançaram
os pedregulhos ao mesmo tempo, um contra o outro, e deu-se o choque
no ar, como uma colisão de mísseis.
Cada
projéctil voltou à sua origem, indo embater nas cabeças
subitamente estonteadas dos gigantes. A cabeça de Júlio desabou
sobre a terra revolta onde os cachorros tinham sido enterrados e a de
Noé ficou reclinada num ramo, docemente, como num braço de mãe,
tal a violência da pancada.
XXI
Em
consequência da briga que Júlio e Noé travaram na mata, viam-se
espalhados por toda a parte bocados tenros de pele, ossos minúsculos,
cachos de pêlos, líquidos de olhos. Os dois inimigos tinham
abandonado o lugar algumas horas após o diabólico confronto, sem se
preocuparem com as pistas que deixavam.
Assim,
era difícil saber quem fora ali enterrado. Se pessoas ou cães.
Porque a luta entre Júlio e Noé se encarregara de semear a confusão
a toda a volta.
A
imagem que ficava era a de um sacrifício, metade humano, metade
canino.
Só
podia saber o que acontecera quem tivera a sorte de presenciar o
duelo espantoso.
Mas
o essencial, agora, era a linha de pútrido cheiro, fino aroma de
morte, que envolvia a cidade como um arco-íris de matéria
decomposta. Porque os elementos encontrados não se coadunavam com o
relato dos olhos. Para saber toda a verdade, era preciso analisar os
odores. Ainda que estes fossem mesquinhos e insignificantes quando
comparados com a podridão nauseante que alastrava por entre o
casario na cidade.
De
qualquer modo, ao último confronto dos gigantes ficou sempre
associada uma nuvem de lendas, que nem os tempos vindouros haviam de
esclarecer. Era importante manter as narrativas originais, com as
suas páginas de mistério, a fim de que o sofrimento não se
diluísse nas interpretações científicas ao passado. Além de que
era importante que a verdade tivesse os seus direitos.
De
uma forma ou de outra, a vida dos gigantes valia pouco mais do que a
dos cachorros. Ignorados nos confins do mundo, ninguém se
interessaria por repor a verdade dos factos. O que, só por si,
justificava a sobrevivência da lenda.
Já
recuperado da pedrada na testa, Noé chegou à porta da taberna. Era
a primeira vez que regressava à cidade depois de ter sido raptado.
Mas estava com dificuldades em entrar na passagem estreita. Até
parecia que os outros monstros lá dentro o repeliam com olhares
venenosos.
Porém,
a curiosidade sobre as notícias que traria o gigante também exercia
a sua influência.
Noé
baloiçava na porta, esforçando-se por entrar, ou sair, conforme o
desejo expresso nos olhares que o fustigavam.
O
mais certo era deixarem-no entrar e beber, apesar das restrições
que a minúscula entrada punha à sua corpulência.
De
qualquer maneira, o vigarista já se encontraria de algum modo
aliviado por ter ajustado contas com Júlio. Segundo o próprio
dizia, fora o seu maior rival quem denunciara as suas burlas.
Por
isso, agora, os outros gigantes podiam estar descansados porque não
lhes seriam atribuídas culpas. Apesar dos suores frios que corriam
nas suas faces oleosas.
Entretanto,
Noé não era homem para se deixar enredar em subtis hermenêuticas
de textos ocultos nas almas. Por isso, entrou na taberna, conforme
estava previsto, após alguns contorcionismos mirabolantes na porta.
E só travou o impulso quando bateu com o nariz no rebordo do copo de
cerveja que já lhe tinham colocado em cima do balcão.
O
taberneiro estava disposto a dar tudo para que Noé não
estabelecesse relação entre a sua taberna e o assalto que lhe
haviam feito a casa.
Apesar
das fraudes de Noé, muitos dos presentes não escondiam a admiração
que tinham por ele. Até porque há sempre um espaço de
solidariedade que se cria entre quem rouba e quem é roubado. Havia
gigantes, contudo, que lhe reservavam um ódio sem limites.
Quem
se encontrava na taberna naquele momento não estava ao corrente das
condições em que se dera o regresso de Noé à cidade.
O
monstro podia vir apenas beber, podia vir na disposição de ameaçar
alguém, podia vir tagarelar sobre o muito que fizera, e faria, ou
podia tão só vir derramar a raiva habitual contra o primeiro que se
metesse com ele.
O
mais certo era aproveitar para agitar o ar pesado com golpes
devastadores sobre a generalidade dos monstros, vingando-se de todos
por aquilo que uns poucos lhe haviam feito.
E
como se viesse mesmo a propósito, Noé desatou a contar, num tom de
voz arrastado, tudo o que lhe tinha acontecido desde que fora
dominado pela anestesia dos dois forasteiros.
Havia
acordado no interior de uma névoa com sombras movediças. Estava na
cela de uma prisão. Sentia as carnes espremidas contra os limites do
espaço onde praticamente não cabia. Deitado sobre o comprido, a sua
barriga, ao encher-se de ar, tocava no tecto, e assim enxotava as
moscas, que voltavam aos seus poisos, quando ele diminuía o ventre.
De
acordo com o seu relato, tivera grande dificuldade em virar-se, tal
como acontecera na porta da taberna ao entrar, a fim de subir à
janela e espreitar através das grades para o exterior.
Quando
o conseguiu, viu as pessoas, do tamanho de formigas, andarem em baixo
nas ruas. Imagine-se o nível de segurança onde o tinham encerrado.
Só
que nem assim Noé desanimou. Porque não lhe faltavam tácticas na
cabeça para o ajudar a sair dali.
Esperou
pela noite, sua grande aliada, e, quando a urbe desconhecida e imensa
caiu num sono de luzes apáticas, empregou todas as suas forças
contra as grades da cela. Torceu os ferros em poucos minutos,
alargou-os, flexibilizou-os.
Desimpedida
a janela, fabricou uma espécie de páraquedas com os lençóis da
cama e saiu para o exterior.
Antes
do salto, porém, e como para se certificar que tinha tudo sob
controlo, ainda apoiou os pés numa cinta de pedra lavrada na
saliência que rodeava o edifício por fora.
Noé
experimentou, por uma última vez, a engenhoca fabricada com lençóis,
tomou balanço e projectou-se no ar de braços abertos para amortecer
a queda.
Mas
os seus esforços de nada valeram. O monstro estatelou-se no chão
com a rapidez de uma cagadela de ave. Foi a ironia suprema para um
homem da sua estatura, ali, estendido sem dar acordo de si, até ao
clarear do outro dia, quando os guardas, alertados pelos transeuntes,
vieram socorrê-lo.
Ao
recuperar a consciência, a primeira coisa que Noé quis saber foi o
nome do país em que se encontrava. Obteve como resposta um par de
algemas nos pulsos.
Trouxeram-no
de volta para a cadeia e encerraram-no num cubículo apertado, cheio
de água até aos joelhos (até ao pescoço, no caso de um cidadão
vulgar).
Noé
teve que se conformar com a sua nova situação. Em vez de
desesperar, passou a explorar as leis a seu favor. Manipulá-las,
contorná-las, furá-las.
Assim,
fez amigos na prisão. Guardas e reclusos, todos lhe obedeciam e eram
serviçais.
Conseguiu
que lhe dessem liberdade de sair e entrar quando lhe apetecesse.
Deste
modo, podia voltar agora à cidade para rever os gigantes e matar
saudades do convívio na taberna.
Não
se cansava de contar que tinha tudo o que queria na cadeia. Até
organizava concursos e apostas com os detidos. E ganhava dinheiro. Os
seus melhores clientes eram os guardas e o próprio director do
estabelecimento prisional.
Noé
progredira em todos os sentidos com a sua nova vida.
Os
gigantes ouviam-no, entusiasmados, e bebiam. Depois queriam saber os
motivos da sua última briga com Júlio.
Mas
Noé calou-se nessa ocasião. Ficou sem saber o que dizer. Inibido,
viu-se de súbito despojado de argumentos. Deu meia volta na direcção
da saída, depois voltou atrás e debruçou-se sobre o balcão.
Viram-no engolir em seco. Foi a única vez em que fraquejou sem
adversário à vista.
XXII
Balançando
entre a noite e o dia, sobre a sua cama de lazeira, Júlio coçava a
orelha esquerda, que ainda não curara por completo desde a última
briga com Noé. A seu lado, estava Dora, com o seu aroma de pinheiro
derramado sobre os lençóis.
Júlio
tocou ao de leve na mulher, a ver se ela dormia. Estava impaciente
por fazer amor com ela. Mas havia que ser prudente. Para não
despertar a giganta afundada nos sonhos.
Um
ponto de luz incandescente surgiu no horizonte dos seus olhos às
escuras. Fazia lembrar uma estrela correndo sobre a planície, por
trás das casas. Era sempre assim quando fazia amor com Dora a
dormir. Havia uma luz, infalivelmente, diante dos seus olhos.
O
gigante percebeu que podia avançar para a fonte de resina no
pinheiro de Dora. O seu corpo confundiu-se com uma quantidade de
bandeiras desfraldadas que se viam naquele instante à beira-mar.
Júlio era ele, mas, ao mesmo tempo, não era. Estava longe, em
liberdade, levado nas asas do desconhecido.
Na
sua visão, aumentava o ponto que brilhava no horizonte. E o desejo
crescia, borbulhando. Perguntava a si mesmo qual o sentido da luz
vertiginosa que vinha na sua direcção, que recado traria no bico,
que notícia de morte ou de vida (rápida esta, e decisiva; lenta a
outra, caudalosa). Para não ser surpreendido, resguardava os olhos
sob as pálpebras e esperava que tudo decorresse com normalidade.
Dora
abraçava-o, apesar de estar mergulhada na inconsciência. Tinha o
aspecto de quem era capaz de desvendar as mensagens mais enigmáticas.
Os
corpos de ambos tresandavam de cheiros citadinos, que é como dizer
putrefacção. Júlio passou a ver a luz dividida em duas, o que fez
com que a projecção da claridade ganhasse novo impulso. Era como se
um par de Sóis, inicialmente encobertos pelas casas, começassem a
impor-se, finalmente, sobre a inclinação dos telhados.
Dora
espremeu o marido com os seus membros electrificados de prazer. Fê-lo
como se lhe fosse indiferente a identidade do companheiro. Ou como se
estivesse a entregar-se nos braços de um novo homem.
Nessa
altura precisa, Júlio viu uma terceira luz a crescer dentro da luz
dividida em duas. Tudo isto somado aos bulícios que lhe trepidavam
na cabeça. Atordoado pelo cheiro a resina, endureceu os músculos de
espanto, preparando-se para a libertação que se aproximava.
Mas
foi Dora quem se antecipou. Porque Júlio se continha nas ocasiões
mais frenéticas. Contudo, a sua visão era clara e arrebatadora no
momento de maior prazer.
As
duas placas que já antes encontrara e que indicavam a direcção do
Céu e do Inferno vinham agora ao seu encontro. Júlio recordava-se
dos planos que arquitectara para tomar o poder na outra vida. Mas
salvara-se a tempo de regressar à cidade.
Tudo
indicava que os espíritos andavam confusos e extenuados de tanto
andarem à procura do Céu e do Inferno. Por isso, apoquentavam os
sonhos de Júlio, deixando as suas marcas de éter a rodopiar em
círculos na visão asfixiante.
As
placas do Céu e do Inferno estavam surpreendentemente iluminadas. A
sua luz avançou sobre as casas, sobre o corpo de Júlio, enchendo de
fogo tudo o que mexia.
A
claridade rebentou em fios. Desfez-se para ganhar força. Os seus
tentáculos espalharam-se pelo negrume em redor. Parecia uma noite de
pomba, com foguetes explodindo no ar e fazendo mais negra a parte
seguinte da noite.
A
partir de então, Júlio só teria noites derramadas sobre os seus
olhos. Já não havia significado para as rotas do futuro. Apenas a
alegria triste sobre o corpo disperso de Dora.
A
cama amoleceu, após a euforia dos gestos. Ficou o descanso. Que
anunciava a morte.
Mas,
entretanto, o corpo de Dora incharia de vida lá dentro. Mais um
gigantinho viria ao mundo, em consequência daquele amor sonâmbulo.
Já
tinham vindo muitos gigantinhos. Tantos que não era possível
contá-los. Desde o primeiro filho, Dora nunca precisara de ajuda na
altura do nascimento, nunca berrara de susto ou de medo.
Quando
chegava a sua hora, estendia-se na cama, de pernas abertas, com a
grande barriga quase tocando o tecto. Espremia-se, apertava os
músculos, até o gigantinho aparecer com a cabeça ensanguentada na
luz rarefeita do quarto. Ela puxava-o com as mãos enormes e
aproveitava as suas primeiras lágrimas para o lavar.
Logo
a seguir, embrulhava-o em panos. Como não havia água em casa de
Júlio, as crianças tinham aquela cor de bezerros acabados de vir ao
mundo.
Após
o parto, Dora ia buscar água à fonte pública para lavar a casa.
Trazia os baldes cheios numa mão e na outra o recém-nascido.
E
enquanto esfregava a sujeira da parede, as vidraças partidas, lavava
o gigantinho acabado de nascer. Assim, resolvia uma coisa e a outra.
No
dia em que Dora pariu o primeiro filho, Júlio regressou a casa, para
cozer mais uma das suas bebedeiras, e deu uma sova mestra na mulher,
a pretexto de ela o não ter informado do nascimento da criança.
Além
de andar constantemente envolvido em brigas com Noé, Júlio
atravessou os anos sempre pegado de rixas com Dora. Crivava-a de
nódoas azuladas no corpo, corria a casa insultando, exigindo,
ordenando, impondo.
O
seu comportamento só se alterou a partir da altura em que descobriu
o anel de Dora caído a poucos metros da porta de casa. Aí, a sua
raiva abrandou. E as dúvidas penetraram no seu espírito.
Júlio
nunca mais voltou a ser o mesmo gigante, colérico e espalhafatoso,
que não perdoava no instante de apontar a lâmina à garganta
inimiga.
Agora,
apagava-se como um candeeiro a que vai progressivamente faltando o
petróleo.
O
tempo passava e o gigante estava cada vez mais amarfanhado. Não
conseguia esquecer o que sucedia, à noite, quando surgiam cantares
estranhos e melosos à flor dos telhados.
Revirava-se
na cama, cheio de calores, coçava a orelha, as feridas remotas, os
ardumes. De olhos fechados contra as estrelas, via os seus restos
explodirem na escuridão. Um martírio.
Tudo
parecia anunciar uma fatalidade. Tal como a dos cachorros enterrados
na mata.
Júlio
estendia as mãos para o lugar de Dora e já lá não encontrava o
seu corpo. Apenas a cova no colchão. De repente, a mulher tinha
abandonado o sossego da cama, à revelia de Deus, embora nos lençóis
ainda residisse um leve aroma de pinheiro.
O
marido ficava inquieto. Porém, não ia à procura da mulher, o que
era sinal de que lhe restava pouco tempo de vida. Porque um gigante
nunca pode esmorecer, sob o risco de o vazio tomar conta dos seus
órgãos, dominando-os, esfrangalhando-os, amolecendo-os.
Era
o que lhe estava reservado. Na verdade, desde há anos que uma
estranha figura de manto pela cabeça o perseguia pelas ruelas da
cidade. Às vezes, a sombra afastava-se, outras vezes rondava-o,
comprimia-lhe o peito, ameaçando levá-lo consigo.
O
gigante sempre resistira ao cerco da morte. No dia em que havia
destruído os camiões, até a sacudira numa corrente de ar. Nunca a
tolerara perto de si.
No
entanto, Júlio chegara a uma idade em que o melhor que tinha a fazer
era estar quieto sobre o colchão e deixar que a morte gerisse o
resto da melhor forma.
XXIII
Desde
que os passeios da mulher nocturna haviam surgido pela primeira vez,
sabia-se que alguma influência teriam no desenrolar desta história.
Nos
últimos tempos, ela andava desaparecida, o que coincidiu com o
período de reconstrução da cidade e com a ausência de Noé.
Mas,
após o regresso do gigante, nessa mesma noite, quando já quase
afloravam os primeiros raios do dia, a mulher da camisa de dormir
transparente voltou a inquietar os monstros com as suas melodias que
faziam estremecer a aspereza dos colchões.
Em
certa casa, babava-se um gigante de rosto escondido no travesseiro.
Noutra, uma giganta volvia-se de impertinências nas ancas. Mais
além, acendia-se uma luz...
Desacostumado
que estava à casa vazia, Noé passeava rente às paredes, como se
estivesse à espera de alguém, de um morcego, de uma mulher ou de
uma Lua perdida no firmamento. Nada parecia capaz de consolar a
solidão do gigante. Dava a impressão de haver uma fogueira oculta
ardendo nas paragens mais imprevistas da sua alma.
Incapaz
de estar em casa, Noé saiu para a rua, nervoso e olheirento. Pôs-se
a calcorrear as esquinas e becos, como outrora Júlio tivera por
hábito fazer.
Só
que Noé não tinha degrau de pedra à entrada da oficina onde
descansar o ardume das cinzas, nem cadela lambuzona para lhe adoçar
o inchaço das veias nos pés.
Assim,
andava perdido sob os beirais e varandas de sombras. O gigante
procurava a confirmação do invisível, do que é preciso
compreender com a nitidez de uma primeira ideia.
Os
suspiros da mulher misteriosa moravam agora em outro recanto, outro
leito, outra casa, outro corpo.
Quando
se vagueia pela noite das ruas, o prazer é o ferro da dor que nos
consome. Assim, Noé mais nada tinha a fazer senão procurar o sítio
onde se encontrava a mulher com camisa de dormir transparente. Havia
de saltar o muro e diminuir a distância que o separava dela. Havia
de dar cabo daquele que tivesse tomado o seu lugar. Havia de
reconquistar o corpo que perdera.
Mas
Noé teve dificuldade em enfrentar a realidade quando percebeu
verdadeiramente o que se passava. Uma coisa era prever, outra era
sentir na pele.
Chegado
a uma esquina pouco frequentada, ouviu os gemidos que lhe eram tão
familiares. E deixou-se ficar imóvel, aterrado, incapaz de qualquer
avanço ou recuo. A poucos metros de distância estava a mulher com
quem ele tinha passado tantas noites. E ele não podia fazer nada.
Sentiu que o pânico o invadia de uma forma nunca vista. Nem a
presença de Júlio era capaz de ter o mesmo efeito sobre ele.
Apesar
de os gemidos virem de uma casa abandonada, não se atreveu a dar um
passo, a mexer um dedo.
Nunca
pensara que fosse possível alguém dar o mesmo prazer á mulher com
quem ele se fartara de dormir. Os mesmos sons, os mesmos sussurros,
os mesmos ais...
Noé
deixou-se ficar ali por tempos infindos. Até ao nascer do Sol.
Esqueceu-se dele mesmo. Quando veio a si, horas depois, já não se
ouvia nada. Só o eco que desaparecera após a fuga dos amantes.
Enquanto
se espreguiçava, o monstro recordou a mulher arisca com quem anos
antes fora casado e com a qual se desentendera definitivamente por
causa de uns cortinados. Noé regressara, então, ao bafo quente da
mãe, ao lado de quem passava as tardes debruçado na janela.
Todavia,
a verdade ainda não tinha sido completamente desvendada. Porque Noé
não se separou da mulher por causa de umas simples cortinas. Estas
tinham sido uma desculpa para encobrir o que realmente se tinha
passado.
Chegada
ao fim a cerimónia de núpcias, Noé e a esposa não quiseram saber
dos dois ou três convidados que lhes tinham feito companhia na
igreja. Desatinados, precipitaram-se numa correria para uma casa de
cinema, onde se exibiam filmes pornográficos.
Na
altura do intervalo, já estavam suficientemente excitados com as
cenas observadas. Por isso, vieram de novo a correr para se encerrar
na residência onde passariam a viver dali em diante.
Despiram-se
em movimentos acelerados e logo que o gigante penetrou a companheira,
sentiu uma dor aguda no pénis, enquanto um cheiro a sangue invadia a
cama esverdeada pela escuridão.
Concluindo
que havia algum problema com a giganta que acabara de desposar, Noé
acendeu a luz do quarto e viu aquele enorme poço de sangue no
lençol.
A
sua primeira reacção foi agarrar-se ao membro da virilidade, não
fosse a mulher amputá-lo à dentada, enquanto ele se encontrava
desprevenido.
Depois,
correu a fechar-se no lavatório, enrolou o membro ferido com uns
restos de camisa que encontrou à mão e regressou a casa da mãe,
mantendo o pénis resguardado durante uma quantidade de anos. Porque
ouvira dizer que uma ferida quando sara é sinal de morte à
espreita, passou a ter o cuidado de vigiar diariamente o estado das
suas partes íntimas. Com o canivete, reabria a ferida, sempre que a
mesma estava perto de sarar. De tantas vezes ter mexido e remexido
onde não devia, Noé viu o seu órgão inchar até ficar do tamanho
de uma abóbora.
Mais
tarde, haveria de mostrar as partes íntimas aos gigantes reunidos na
taberna, na certeza de que aquele era um dos seus motivos de orgulho.
De uma coisa não restavam dúvidas: num eventual confronto entre o
seu pénis e o de Júlio, o vencedor era indiscutível.
O
pénis de Noé ganhara, assim, a fama de ser o maior da cidade. E Noé
mantinha-o envolto em panos, para garantir que não havia outro tão
imponente.
Desta
forma, conhecidas e reconhecidas as capacidades sexuais de Noé,
muitas gigantas ganharam o hábito de o procurar durante a noite. E
até gigantes de barba rija faziam o mesmo. Todos encobertos pelo
segredo ou alegando motivos de negócios cujos resultados já se
tornaram sabidos de todos.
A
própria mulher com quem Noé fora casado durante poucas horas (agora
mãe de um sem número de filhos e companheira de outro gigante) era
uma das que mais assiduamente o visitava pela calada da noite.
No
entanto, alguém lhe tinha passado a perna durante o período em que
estivera preso. E, agora, nem as espantosas qualidades do seu órgão
genital pareciam suficientes para ter de volta a única mulher que o
levara ao altar.
Poucas
semanas depois, soube-se que esta passou a queixar-se dos mesmos
males de Dora. Apertos no peito, picadas nos pés, tremores de frio,
dores de cabeça e de costas, entre muitos outros motivos de
suspeita. O curandeiro foi de novo chamado a intervir. Durante as
suas visitas, reunia-se muita gente à porta da giganta, todos
querendo saber e ver o que se passava dentro do quarto. O certo é
que a giganta melhorou ao fim de uns tempos. Mas nem assim quis
voltar aos braços do antigo marido e amante.
Desgostoso
por ter sido preterido, Noé deitou a correr em gritos escabrosos
pela cidade, anunciando uma grande desgraça para o mundo, como se
quisesse que a mãe o ouvisse lá nas alturas do Céu.
Vieram
muitas gigantas à janela ver o que se passava e não queriam
acreditar quando perceberam tratar-se de Noé.
Chamavam-no,
convidavam-no a entrar em suas casas, instigavam-no a mostrar o que
valia, mas ele não queria saber e continuava em frente sem qualquer
destino. Fazia lembrar um rio sem freio que não detém os olhos nas
pedras húmidas do cais, para ir desaguar adiante, sempre mais
adiante...
Nem
as brigas com Júlio pareciam capazes de lhe devolver o ânimo. Se o
rival lhe aparecesse pela frente naquela altura, armado de pistolas e
varapaus, o mais certo era Noé não o ver, não lhe ligar, não
querer saber quem era o homem mais forte da cidade.
A
sua vontade era berrar, berrar o mais alto possível, e destruir tudo
o que lhe aparecesse pela frente. Não queria lutar, só queria
destruir. E assim foi fazendo, à medida que passava pelas ruas,
dando cabeçadas nas portas e janelas, escaqueirando candeeiros de
ruas, esvaziando contentores de lixo, atirando-se contra as paredes,
como se tudo estivesse prestes a deixar de existir...
XXIV
A
taberna era o centro da cidade, para onde convergiam todos os
escarros, fumos, arrotos, bufas, apostas, risadas, bebedeiras.
A
maioria dos gigantes entrava em silêncio, para não dar nas vistas,
indo confundir-se com os ruídos dispersos que vagueavam nas sombras.
Mas, ao fim de pouco tempo, já não se conseguia saber quem falava e
berrava mais alto.
Juras,
ameaças, discussões e arengas aconteciam a toda a hora.
Naquele
dia, Júlio apareceu mais calado do que o normal. Trazia sonhos
carregados de dúvidas, noites mal dormidas, recordações de um anel
por esclarecer, pesadelos de cães com cabeças humanas, doenças
estranhas de Dora...
O
monstro já quase só vivia por viver. Estava escrito na sua cara.
A
bebida era a sua tábua de salvação na cidade onde continuavam a
chegar camiões atrás de camiões, descarregando gigantes em série.
Júlio
encostou-se ao balcão da taberna, sem dar nas vistas, e fez por
diversas vezes sinal ao empregado, que distribuía copos e garrafas
pelos bêbados.
Mas
ao notar que não o atendiam, logo se retraiu. Não queria dar
mostras de ânsia.
Enquanto
esperava que chegasse a sua vez, sentia moedas a tilintar no relógio
do cérebro e ia viajando com os olhos pelos presentes.
Quando
lhe perguntaram o que queria, Júlio pediu. Mas teve que pedir outra
vez. Porque o empregado não queria acreditar no que ouvia. E nem à
terceira tentativa parecia convencido.
Então,
o gigante deu um berro e exigiu imediatamente que o seu pedido fosse
satisfeito. Um barril de aguardente! Exacto. Um barril de aguardente.
Que Júlio pretendia beber ali à vista de todos.
Sentou-se
a uma mesa e logo todos os outros gigantes se levantaram,
afastando-se receosos.
Ninguém
queria estar ao pé dele quando a aguardente o fizesse tombar para o
lado como uma árvore centenária. Ninguém queria ser acusado de
cumplicidade com o que pudesse vir a acontecer.
Júlio
varreu com a palma da mão todas as pedras de dominó que se
encontravam em cima da mesa. Depois, pôs o barril a seu lado no chão
e encheu o primeiro copo. Nessa altura, alguns gigantes repararam que
ele sorriu comedidamente. Era a primeira vez que o fazia. Depois,
seguiu-se o segundo copo, o terceiro...
Na
taberna, todos os gigantes estavam suspensos do ritmo com que Júlio
vazava copos de aguardente atrás uns dos outros. Se alguém se
aproximasse naquela ocasião com um fósforo aceso, o mais certo era
o gigante desatar a arder como uma tocha.
Nunca
se tinha visto alguém beber daquela maneira.
Júlio
esvaziou o barril de aguardente e parecia ainda disposto a repetir a
proeza com um segundo. Mas nem foi preciso que alguém o impedisse de
fazê-lo. Porque poucos minutos depois de ter bebido a última gota,
o gigante ficou imobilizado, com as mãos sobre os joelhos, de olhar
fixo no vazio, sem mexer um único músculo da face.
Uma
vaga de frio atravessou o grupo de curiosos que se tinham reunido em
torno de Júlio. Ninguém se arriscava a fazer prognósticos. Se o
gigante sobreviveria, ou não. Se desmaiaria, ou não. Se seria capaz
de se levantar, ou não. Se rebentaria como a lava de uma cratera, ou
não. Se adormeceria numa pacatez de suíno com o focinho derreado na
pia, ou não.
Mas
era escusado puxar muito pelas ideias. Pois Júlio era fértil em
surpreender os gigantes. Ou quem não se lembrava da forma como
resistira à potência dos camiões, tendo conseguido dominá-los a
todos?
Só
que desta vez Júlio não era o mesmo. Já não tinha a garra e o
poder de outros tempos.
E
a verdade é que não voltou a sair da taberna pelo seu pé.
A
cabeça não lhe descaiu um milímetro, o corpo não se ajeitou ao
assento como o dos mortos na urna, ninguém lhe ouviu pedir um
agasalho. Ficou ali, como se fosse para sempre, sentado na taberna,
até que alguém percebesse o que tinha acontecido...
De
início, pensaram que a bebedeira havia de lhe passar e deixaram-no
entregue a ele próprio. E, em poucos minutos, a animação já tinha
voltado à taberna como se nada tivesse acontecido.
Um
grupo de gigantes encostou Júlio a um canto muito bem sentado na sua
cadeira e preparou a mesa para um novo jogo de dominó. O gigante
estava imóvel, absolutamente imóvel, como um boneco de cera no seu
canto de museu.
Enquanto
jogavam e bebiam, os presentes iam conjecturando sobre os últimos
acontecimentos.
Falavam
do curandeiro, falavam de Noé, falavam do súbito desaparecimento da
cadela, falavam das doenças de Dora, falavam da mulher que passeava
de noite sobre chaminés e quintais.
Muito
se dizia, muito se murmurava, mas com cuidado, não estivesse Júlio
a escutar tudo no seu silêncio mortal. Até porque o gigante estava
com cara de quem ainda se encontraria em condições para urdir
estratégias exímias contra o grande rival.
Um
gigante aproximou-se de Júlio e acenou-lhe com a mão à frente do
nariz, a ver se ele reagia.
Júlio
não deu qualquer sinal de consciência. E os gigantes puseram-se a
falar de Noé e da sua última cena de andar aos berros pela cidade
sem razão aparente. Falaram da carta que chegara do Paraíso e em
cima da qual nunca mais tinham posto os olhos, falaram das burlas,
falaram da cadeia e do que ele teria pintado lá dentro para se
safar, falaram das amantes que o visitavam pela noite dentro.
Os
anos tinham passado sobre Júlio e Noé. Tinham travado lutas durante
grande parte das suas vidas para ver qual deles conseguia tornar-se o
homem mais forte da cidade e, afinal, hoje, qualquer um deles não
parecia capaz de resistir a um simples desgosto emocional.
Naquele
momento, bastaria a Noé entrar na taberna e vencer Júlio com duas
simples estaladas na cara, que ele tombaria decerto redondo no chão.
E
a Júlio, se estivesse sóbrio, bastaria esperar por Noé numa das
esquinas da cidade e dar-lhe um pontapé no traseiro, que ele
naturalmente se estatelaria de nariz ao comprido.
Como
não havia maneira de Júlio recuperar a consciência, alguns
gigantes tiveram a ideia de ir à procura de Noé. Talvez deste modo
Júlio reagisse. Talvez ante a visão do seu maior inimigo, fosse
capaz de vencer os litros de aguardente que ingerira.
Se
fosse preciso, que Noé desancasse ali mesmo o marido de Dora. Que o
salvasse com a maior sova da sua vida. Antes que fosse tarde demais.
Estavam
todos dispostos a esquecer o passado de intrujices de Noé. O que
importava era resolver o caso de Júlio. Para que se decidisse de uma
vez por todas quem era o homem mais forte da cidade.
Os
dois tinham que se enfrentar de novo. Os gigantes queriam ver
reavivada a luta entre ambos, de forma a tornar clara - e sem
reticências - a vitória de um sobre o outro, como desde o princípio
do livro fora prometido.
Um
deles tinha que vencer, tinha que matar, tinha que destruir. Não
interessava quem.
Em
último caso, o que interessava era que a guerra entre os dois
gigantes jamais terminasse. Que vivessem ambos aos murros por muitos
e longos anos. Caso contrário, a cidade perderia sentido. A sua
história findaria ali.
Que
fossem chamar Noé, então. E depressa. Porque Júlio já estava
sentado na taberna há mais de três horas, sem ganhar nem perder,
sem lágrima nem riso...
XXV
Noé
não apareceu na taberna para presenciar o estado em que ficara o seu
maior adversário depois de ter ingerido o barril de aguardente.
Júlio,
por seu turno, continuava inerte como uma pedra, sem dar o mínimo
sinal de disposição para o que quer que fosse.
Alguns
dos presentes na taberna, com receio do que pudesse vir a acontecer,
sugeriram que era melhor fazer qualquer coisa. Ao menos, levar Júlio
para junto dos seus.
Transportaram-no
em braços, para casa. Júlio estava frio como uma cadáver. Muita
gente fez cortejo atrás dos gigantes que o carregavam (um pelas
pernas, outro pelos braços) como se aquele fosse já o seu funeral.
À
porta da casa de Júlio, estavam Dora e todos os seus filhos.
Antes
de verem o pai, os gigantinhos pensaram que era mentira o que lhes
tinham vindo dizer. Quando o avistaram ao longe, puseram-se a chorar
baixinho. E quando o pai chegou ao pé da porta de casa, estendido na
horizontal, desataram a gritar o mais alto que podiam.
Dora
chorava agarrada a dois panos de loiça. E perguntava em altos berros
quem lhe sustentaria os filhos a partir de agora.
Deitaram
o gigante sobre a cama, em posição de morto.
Quiseram
entrelaçar-lhe os dedos no lugar do peito, mas ninguém foi capaz de
lhe tirar a mão que estava enganchada no fundo de um dos bolsos.
Como se lá estivesse escondido o mais precioso tesouro...
Dora
ficou de joelhos à sua beira, chorando e assoando-se nas dobras do
lençol.
O
quarto foi invadido por muitas gigantas, que se puseram a rezar
orações fúnebres.
Contudo,
lá no seu poiso sobre as nuvens em que descansam os que estão à
beira de se despedir da vida, Júlio mantinha-se atento ao que o
rodeava. Queria ver o que ia acontecer ao seu corpo, aos despojos do
seu corpo, aos restos do seu fígado carcomido pelo álcool.
O
gigante estava em dois lados ao mesmo tempo. No quarto, onde se
rezava pela sua alma e a caminho da nova vida que o esperava.
Era
o processo de separação da alma e do corpo, partindo o gigante em
duas partes.
Com
os olhos do corpo, Júlio observava o quarto repleto de gigantas
comovidas, derramando lágrimas sobre os xailes, rezando em coro pela
sua salvação; com os olhos da alma, mirava o complexo movimento dos
astros em múltiplas rotações no abismo do Universo sem queda, onde
afinal não havia Deus, nem Diabo, só azuis de infinitas chamas,
além, sempre além da visão mais aguda.
E
enquanto a sua alma vagueava no Cosmos, à procura do sítio exacto
onde havia de anichar-se dentro de uma esfera de penas luminosas, o
seu corpo estremecia ao som das vozes que enchiam o quarto de
lamentos e soluços.
No
entanto, a morte nunca mais aparecia. Já tinham passado várias
horas desde que Júlio esvaziara o barril de aguardente. E nem assim.
Aquele
era o momento mais ingrato e cruel. Porque era o momento que
antecedia a decisão. A grande decisão. A decisão que acabava por
fazer as coisas pender para um lado ou para o outro.
O
marido de Dora tinha experimentado quase tudo na vida. O amor e o
ódio, a alegria e a dor, a fraqueza e a força. Tivera a maior
ambição de qualquer ser vivo. E, agora, a decisão alastrava nas
suas entranhas. Apesar de nunca se ter esclarecido, preto no branco,
quem era o homem mais forte da cidade.
Só
que o passado não admitia remendos. Muito menos o futuro.
E
o presente de Júlio era a ameaça de morte que pendia sobre a sua
cabeça. Porque a verdadeira morte é aquela que não se vê, que não
se sabe quando chega, nem de onde vem. Caso contrário, fica sempre
aberta uma nesga no tempo, por onde os espíritos regressam ao mundo
das suas aflições.
Estavam
os gigantes e gigantas neste impasse, em casa de Júlio, sem saber se
ele morria, ou não, quando de súbito toda a gente voltou a cabeça
na direcção da janela do quarto. Ali estava Noé, muito pálido e
esgazeado, a olhar, a olhar...
Ninguém
soube o que havia de fazer. Se afastar o rival dali para fora, ou se
convidá-lo a entrar, para que aproveitasse a última oportunidade de
vencer Júlio enquanto este ainda era vivo.
Mas
Noé não esperou que fosse alguém a decidir por ele e avançou por
entre a multidão compacta de gigantes.
A
sua atitude repentina provocou gritos e súplicas de piedade.
Pediam-lhe que tivesse dó de Júlio, que não o desancasse, que
esquecesse as lutas do passado.
Dora
ainda tentou impedi-lo de se aproximar do marido, ainda tentou
puxá-lo de forma a evitar a destruição pecaminosa do morto, mas
Noé estava indomável e transtornado.
Conseguiu
chegar ao pé da cama, onde Júlio permanecia impávido e sereno,
como se há muito esperasse por aquela hora, a hora de todas as
verdades.
Muitos
dos presentes perguntaram-se o que aconteceria a seguir. Se Júlio
estaria a fazer fita à espera de apanhar Noé desprevenido, ou se
estaria realmente a morrer. E interrogaram-se, também, sobre as
reais intenções que haviam trazido Noé até junto da cama de
Júlio. Se viria saber da sua saúde, ou se lhe viria dar cabo dos
últimos ossos.
E
antes de se saber quais seriam os planos de cada um dos gigantes,
toda a gente se pôs em fuga, com medo de que a casa pudesse ir pelos
ares a qualquer instante. Pessoas de todas as idades e crenças
acotovelavam-se na tentativa de salvarem o couro, espezinhavam-se aos
encontrões e empurrões pela rua acima, a fim de irem resguardar-se
nos seus covis. Se a casa de Júlio fosse pelos ares, havia de ir,
mas longe da sua vista.
Só
os filhos de Júlio e Dora não fugiram completamente.
Resguardaram-se na esquina mais próxima, desconfiados,
inconformados, revoltados. Porque sempre tinham um pai e uma casa a
defender.
Contudo,
nada do que se temia aconteceu. Dentro do quarto, apenas se ouvia o
silêncio das lágrimas de Noé. A dor corria-lhe pela face sobre as
rugas em todas as direcções. Tinha os olhos vermelhos e quase
fechados de tanta água a transbordar.
Ninguém
esperava por aquelas lágrimas. Nem o próprio Noé. Por isso, elas
corriam com mais liberdade.
O
silêncio que invadiu o quarto de Júlio alastrou a toda a cidade.
Nas tabernas, as vozes calaram-se, os jogos pararam, as discussões
acabaram. Nos caminhos, os carros encostaram à berma, os miúdos
deixaram de correr e gritar.
Parecia
Domingo à tarde numa aldeia distante na serra. Mas era uma
quinta-feira normal de azáfama na cidade de todas as violências e
desordens. E não se ouvia nada num raio de quilómetros. Porque
aquela tarde ficaria para sempre marcada na vida de todos os
gigantes. A tarde em que Júlio e Noé se enfrentaram, por fim, sem
desacatos, sem pancadaria, sem agressões.
Noé
estava sentado na beira da cama de Júlio, com a respiração calma,
mais calma do que nunca, e uma mão poisada sobre a única mão livre
que Júlio tinha sobre o peito.
Agora,
o cadáver não estremecia. Como se todas as linhas da sua existência
tivessem convergido para um único ponto. A própria mão que Júlio
tinha fechada no bolso afrouxara.
Noé
inclinou-se para a frente, sobre Júlio, deixando cair as lágrimas
sobre o rosto e o peito do moribundo. Estava em vias de perder o
único bem que lhe restava. O seu maior inimigo. A única razão do
seu viver.
Sem
Júlio, não faria mais sentido aspirar ao trono de o homem mais
forte da cidade. A partir de agora, ele conseguiria tudo sem luta,
sem trabalho, sem esforço. O fim de Júlio era o início da sua
maior e mais atroz solidão.
Quando
Noé aproximou o seu rosto do de Júlio, este ainda teve um arrepio,
ao ver assim tão perto o inimigo. Parecia outro, desfeito,
enfraquecido, cortado às fatias por dentro. Estava irreconhecível.
E Noé pensava o mesmo de Júlio. Tanta mansidão no homem que sempre
o quisera desfazer em pedaços.
Os
dois gigantes olharam-se de olhos fechados. Um porque os tinha cheios
de lágrimas, o outro porque já não os abria há horas. Nem
voltaria a abrir.
Nesse
preciso momento, o anel de Dora caiu do bolso de Júlio, rolando pelo
soalho como um arco de criança perdido no asfalto depois de uma
catástrofe.
Noé
baixou mais a cabeça, fazendo com que os seus lábios gretados e
grossos poisassem com leveza nos do inimigo. Uma boca gélida e outra
escaldante.
A
história tinha chegado ao fim. E Júlio, também. Naquele instante
exacto.
Noé
sentiu que o inimigo abria a boca, à procura de ar, enquanto a
língua lhe rodava como uma hélice. E correspondeu ao seu gesto.
Tendo o cuidado de rodar a língua na mesma direcção da de Júlio.
Enfim,
os dois estavam de acordo. Estiveram sempre durante o tempo que durou
aquele beijo. Que só terminou quando a boca de Júlio, exausta, se
descomprimiu, e a língua se deteve, encolhendo progressivamente, sem
que a de Noé conseguisse jamais alcançá-la...
FIM